sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

A Sara quer sair de casa

Olá Francisco!

Estás admirado por me veres, hoje, tão cedo?
Tinha de te contar uma coisa. Fui ver as notas. Sim já te tinha dito que tinham sido boas, mas fui à escola ver as pautas... Há colegas meus com umas notas desgraçadas! Há colegas que não tiveram uma positiva! Enfim!
Este ano, como já te disse, há alguns colegas novos. Novos! Uns com idade para terem juízo!, outros, se continuarem a chumbar, ainda irão para a escola com os filhos pela mão, como diz a nossa directora de turma... É incrível a quantidade de anos que já chumbaram! Eles riem, quando a DT diz que eles devem gostar tanto, mas tanto, da escola, que não querem de lá sair. Só assim se explica levarem três anos e mais para fazerem um.  
Uma aluna demorou um mês a aparecer, foi preciso a DT telefonar, vezes sem conta, para a mãe. Entretanto, sob ameaça, lá apareceu na escola. É a mais velha de todos nós! A professora perguntou-lhe por que faltara tanto e ela respondeu torto: que só ali estava, porque a obrigaram a ir. Bem que pudesse, iria embora.
Estava a contar isto à minha mãe, a dizer-lhe que me fazia confusão, os pais não quererem saber do sucesso ou insucesso dos filhos, das faltas, das más notas, das faltas de educação... E, olha, a minha mãe não ficou nada surpreendida, disse-me que lida com casos desses e ainda piores todos os dias.  Contou-me que tem uma aluna com dezassete anos, da minha idade, no 7.º ano, que está grávida; que tem um aluno também da mesma idade, que já foi seu aluno há cinco anos no sétimo ano e continua no mesmo ano (Cá para mim, Francisco, ele já deve saber a matéria de cor e salteado!). Os pais disseram à minha mãe que não lhe compram o material, porque já sabem que ele vai chumbar mais uma vez. Ele está à espera de fazer dezoito anos para deixar a escola. Diz que não gosta de andar na escola! Caramba, não gosta de andar na escola, mas tem de lá andar!... Não seria melhor aproveitar e estudar, passar de ano, fazer alguma coisa? Não percebo em que pensam estes miúdos?! E os pais?! Que graça tem andar no sétimo ano 5 ou 6 anos só para passar o tempo?
A minha mãe diz que já falou com os pais, com os alunos, com os pais e os alunos ao mesmo tempo e não conseguiu meter juízo nenhum na cabeça daquela gente.
Mas, isto foi um parênteses! Encontrei a Sara. A Sara? Sim. A do acto irreflectido? Sim, Francisco. Ela disse-me que quer sair de casa, que os pais não a compreendem, que quer fazer a vida dela, que não quer dar cavaco a ninguém..., que está farta de ser controlada, que já tem 22 anos... Perguntei-lhe para onde ia morar e como ia fazer para sobreviver. Que ia arranjar um emprego. E as aulas? Que está farta das aulas e que às tantas não consegue fazer outra vez a Matemática. Claro, se continuares a faltar, se não estudares, se não fizeres exercícios, vais chumbar, Sara!, disse-lhe. Nem me ouviu! Vou a uma entrevista de emprego, se conseguir ficar... saio de casa, alugo um quarto, afirmou. Tentei fazer-lhe ver que devia fazer a disciplina que tem em atraso, mas creio que ela nem ouviu os meus argumentos. Pronto! Estou preocupada com a Sara, porque ela só se mete em encrencas. É filha única, os pais são óptimas pessoas, não mereciam uma filha tão destrambelhada! Quando souberem que ela quer sair de casa, vai ser um Deus nos acuda! Coitados! Pedi à minha mãe para falar com ela. A minha mãe telefonou-lhe, ouviu-a, ouviu-a, ouviu-a... No fim, a minha mãe perguntou-lhe se podia falar, ela deve ter-se calado, finalmente. A um gesto da minha mãe, saí do escritório. Uma hora depois, a minha mãe chamou-me e passou-me o telefone. A Sara disse-me, tens uma mãe espectacular, por agora não vou sair de casa. Fazes bem, Sara, disse-lhe. Bom Ano Novo! Vemo-nos na escola.
Sabes, Francisco, a Sara vai acabar por sair de casa. Ela acha que por ter 22 anos já é senhora do seu nariz, mas, como a minha mãe diz, ela só será "livre, emancipada, maior...", quando tiver com que se sustentar... E, por isso, é  que ela devia estudar e não andar a meter-se em aventuras, encrencas...


domingo, 22 de dezembro de 2013

Eu e as minhas boas ideias

Francisco, finalmente as férias chegaram. Vou ter mais tempo para conversar contigo. O Natal é um tempo mágico, mas muito apertado, há muito que fazer! Vem a família toda e é preciso decorar a casa, fazer doces, doces e doces, o bacalhau, as couves e as batatas, o peru... É uma canseira, mas uma canseira boa!
Novidades? Novidades, deixa-me ver... A minha mãe recebeu mais bilhetes? És mesmo cusco! Bem, recebeu mais dois ou três, no último vinha um número de telefone. Sim, um número de telefone. O autor queria tomar um café e conversar com a minha mãe. A minha mãe? Não ligou e rasgou o bilhete. Mas, eu tive uma ideia! Eu e as minhas ideias? Diz antes: eu!, e as minhas boas ideias! 
A minha mãe não queria, que não, que mais isto e aquilo... Eu sou teimosa e acabei por convencê-la. Disse-lhe que respondesse ao bilhete e o deixasse no carro... Quando o indivíduo lá fosse pôr um dos seus recadinhos, veria o bilhete. Se acho que ele o leu? Claro que leu! Se tenho a certeza?  Eu vi o fulano. Vou contar-te.
Eu e a minha mãe escrevemos o bilhete: "Obrigada pelos vários elogios, o senhor é muito gentil. Não é necessário escrever mais bilhetes a dizer que sou uma senhora muito bonita e elegante. Quanto ao cafezinho e à conversa, fique a saber que não falo com pessoas desconhecidas. Tenha uma boa tarde e, por favor, não deixe mais bilhetes, pois não possuo caixote do lixo no carro." O que nos rimos! Mas deu resultado, ele não voltou a deixar papelinhos. 
Eu vi-o a ler o bilhete, sim. Fiquei no café em frente ao estacionamento, enquanto a minha mãe foi ao ginásio. O carro estava virado para a porta do café. Estava a beber um sumo e a comer um pastel de nata e a vigiar o carro. E passado um bocado, lá surgiu o rapaz. Sim, rapaz. Deve andar, perto dos trinta. Um rapazola! Chegou ao pé do carro, olhou para um lado, para o outro, para a frente, para trás e tirou rapidamente o bilhete do limpa pára-brisas. Leu, fez uma careta e voltou a pôr o bilhete no lugar de onde o tirou. O bilhete que tinha na mão, o dele, rasgou-o e, vê lá tu, atirou os papelinhos para o chão. Deu meia volta e saiu apressado dali. Depois deste episódio, pararam os bilhetinhos. 
Quando a minha mãe voltou do ginásio, passou pelo carro para deixar o saco, tirou o nosso bilhete, amassou-o e colocou-o no bolso e foi ter comigo ao café. Sentou-se, sorriu-me e disse:
- Afinal, não veio.
- Veio, veio. Leu o bilhete e voltou a pô-lo no lugar.
- Ah!
- O bilhete dele rasgou-o e atirou os papéis para o chão, o porcalhão.
Rimo-nos. A minha mãe pagou e saímos. Ainda apanhei alguns pedaços do bilhete que dizia: Fiquei à espera do seu telefonema...
E pronto! Acabou a história. Acredito que não volte mais a incomodar.
Vou dormir. Amanhã falamos. As notas? As notas foram boas e passei no exame de código. Qualquer dia, vamos dar um passeio. Um perigo? Eu? Olha, obrigadinha pela confiança! Vá, vai dormir. Tu tens é sono.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O bilhete

Olá Francisco!

Sei... sei muito bem que tenho falado pouco contigo, mas já sabes como é...
Olha, tenho ido às aulas e tenho ido ter com a minha mãe ao ginásio, espero por ela e, depois, vamos lanchar e tem sido óptimo. Temo-nos rido bastante com as reacções das pessoas... É engraçado, estarmos numa esplanada, descansadinhas, a saborear o nosso lanchinho e a observar o que se passa à nossa volta... E, por vezes, mesmo sem falarmos, apenas uma troca de olhares, um sorriso... e acabamos a rir à gargalhada. As pessoas são tudo menos discretas!

E os homens que frequentam o ginásio, tu não estás bem a ver... Armários. Alguns são autênticos armários andantes a pavonearem-se de um lado para o outro. A minha mãe, lá, está, na dela, a fazer os exercícios, a olhar para a televisão e, de vez em quando, a procurar o meu olhar... E sorrimos... Ambas sabemos de quê. Dos pavões rectangulares, claro!, ou seja dos armários. Outros são tão gordos e disformes que mesmo que frequentem o ginásio dia e noite, jamais chegarão ao estatuto de armário andante. E os olhares que deitam às mulheres! Eu divirto-me a sério a observar aqueles rituais. Olha, há vários olhares: olhares desaprovadores para as meninas e senhoras mais gordinhas e balofas; olhares de engatatões para as miúdas e senhoras com tudo no lugar; olhares que ficam presos nos traseiros ou nos seios, conforme o gosto; olhares insistentes à procura de outros olhares que olham, mas não vêem. O olhar da minha mãe é este último. 
Pergunto-lhe, à saída:
- Viste aquele fulano de cabelo rapado que não tirava os olhos de ti?
- Quem? Qual?
- Moreno, alto, careca...
- Humm, não vi ninguém com essa descrição.
- Pois, mas olha que ele viu-te bem e de todos os ângulos.
- E aquele que insistiu para te levar os pesos?
- Que tem? Quis ser amável e despachar-me da máquina...
- Ó mãe, o tipo andou o tempo todo atrás de ti, a fazer os exercícios que tu fazias... Achas isso normal?
- Sei lá! Eu vou ao ginásio fazer exercício, não vou ver armários nem pavões, como tu lhes chamas.

Hoje, ao chegarmos ao carro, havia um bilhete no limpa pára-brisas. Ia dando um ataque à minha mãe. Pensou que fosse uma multa. Começou logo a dizer mal à vida dela e à procura do sinal de "Proibido estacionar". Eu, calmamente, até porque não seria eu a pagar a multa, dei a volta ao carro, tirei o bilhete, acenei e disse não é uma multa. A minha mãe sorriu:
- É mais um daqueles "curandeiros" a apregoar os seus serviços?
- Não! "A senhora é muito bonita!".
- O quê?
- O bilhete diz: "A senhora é muito bonita!".
- Mostra lá.
Olhou o bilhete, olhou para mim e desatámos a rir.
- Vamos para casa.
- Ó mãe, não tens curiosidade? Não gostarias de saber quem escreveu este bilhete?
- Não! Algum idiota que precisa de óculos ou que se enganou no carro.
- Tu és bonita mãe! pode ter-se enganado no carro, mas se te viu e se escreveu o bilhete para ti, não precisa de óculos nem é cego.
- Rita, tu e a tua imaginação!
- Olha, mãe, sabes que mais? Se o autor do bilhete não se enganou no carro nem na pessoa, ainda vão aparecer muitos bilhetes... 

Vou jantar, Francisco!

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Um acto irreflectido

Olá Francisco!
Os exames da minha mãe estavam óptimos. Tudo bem. O médico que já a conhece há 10 anos, brincou com ela como sempre! Ele tem um grande carinho por ela! Pronto, está tudo como deve estar, está linda por dentro e por fora, viva, divirta-se, o que aconteceu já lá vai, para quê essa tremedeira toda, essa cara de medo, essa desconfiança... Aí, o sorriso da minha mãe abriu-se, tudo na cara dela sorriu, principalmente os olhos. E pronto! 
Olha Francisco, eu tinha-te dito que depois te contava aqueles momentos horríveis por que a minha mãe passou e toda a família, mas não vai ser hoje. Agora, tenho de te contar uma coisa grave, mesmo grave e, como não posso contar a mais ninguém... Mas é que se não falo, expludo, vou confidenciar-te o que se está a passar com a minha amiga Sara.

A Sara anda a tirar a carta comigo. Eu já conheço a Sara há três anos, conheci-a no 10.º ano. Tornámo-nos amigas, mas não muito amigas!, amigas, sabes como é?, sem grandes intimidades. Ela tem 22 anos, temos cinco anos de diferença! Ela achava-me um bocado beta, uma menina da mamã, um bebé ainda. Este ano é que nos aproximámos mais e agora estamos ambas a tirar a carta e temos falado bastante, temo-nos encontrado, temos ido ao cinema, juntamo-nos com amigos, jantamos todos algumas vezes, vimos aqui para casa, para a piscina... Enfim, acho-a divertida, muito extrovertida e desinibida, mas um bocadinho "para a frente de mais!".
Ontem, ela telefonou-me e disse que tinha algo muito grave para me contar e que precisava de falar comigo urgentemente, mas não pelo telefone. Marcámos encontro no café. 
E eis o que ela me contou:

- Rita, sabes aquele professor da escola de condução, aquele bonitão de olhos verdes, alto, que se veste muito bem?
- Aquele que explica muito bem?
- Rita, o homem é lindo e tu só tens para dizer que ele explica muito bem. Mas, sim, é esse!
- Sara, o homem lindo, como tu dizes, tem mais de cinquenta anos, tem idade para ser teu pai. Tudo bem, ele deve ter sido um borracho quando era da nossa idade, mas agora, é um bocadito velho, não achas? 
- Por amor de Deus, Rita, velho? Já viste que os rapazes da minha idade, nem falo dos da tua!, são uns pãezinhos sem sal, não têm graça nenhuma, não sabem falar de coisa nenhuma...
- Sara, a coisa grave que me querias contar... é que... (e eu olhava muito séria para ela, para os olhos dela)... Por favor, não me vais dizer que estás apaixonada pelo professor?
- Não, não estou. É mais grave do que isso!
- Mau!
- Fui para a cama com ele.
Franzi a testa. Parecia que algo me tinha caído em cima. Ela acabara de me dizer da maneira mais natural que tinha ido para a cama com o professor. Levantei a sobrancelha esquerda de tal forma que me pareceu que não ia conseguir colocá-la de novo no seu devido lugar.
- Sara, tu só podes estar a brincar! O homem, às tantas, até é casado...
- É divorciado.
- Seja como for, como é que foste capaz de ir com um homem da idade do teu pai para a cama? Ainda por cima, disseste que não estás apaixonada por ele! Caramba, onde andas com a cabeça!
- Olha, eu não sei como aconteceu, ele diz que eu o andava a seduzir, a provocar, que nas aulas o olhava descaradamente e que me punha a lamber o lábio superior de uma maneira muito sensual e convidativa... Mais, que não conseguia tirar-me da cabeça e que até sonhava comigo acordado e a dormir, que em sonhos já tinha feito tudo o que uma mulher faz com um homem...
Eu tinha os olhos completamente esbugalhados, estava atónita, de boca aberta, a mente completamente bloqueada... A Sara é um bocado destrambelhada, tem a mania que é boa, que é bonita, que é sedutora, que os rapazes gostam todos dela (e os que não gostam é porque são gays ou têm um problema qualquer ou ainda andam de volta das saias da mãe e com os cueiros colados ao rabo...). Agora, ir para a cama com um tipo que mal conhece, que não ama e com mais do dobro da idade dela, era dose. Assaltou-me, de repente, um mau pressentimento.
- Sara, usaram preservativo?
Ela riu-se e disse, com um ar muito divertido, descaradamente:
- Sim, mamã, usámos não um, mas dois preservativos.
Voltei a fazer subir as minhas sobrancelhas, com um grande ponto de interrogação a saltar-me dos olhos cada vez maiores.
- Fizemos aquilo duas vezes.
- Aquilo!?
- Rita, não fiz amor duas vezes com ele! Hello!, eu não amo o gajo. Demos duas quecas.
Os olhos quase me saltaram das órbitas de espanto.
- Rita, fazemos amor com quem amamos, com os outros f------, percebes?
- Sara, por amor de Deus, tu andas a tomar coisas? Eu nunca te ouvi dizer palavrões e agora dizes-me que f------ com um tipo duas vezes... Tu não estás bem?
- E não estou! Não sei como me meti nisto! Ele, numa aula da tarde, pegou no meu livro para explicar uma coisa qualquer e depois andou às voltas pela sala com o livro na mão... Entretanto, terminou a aula, saímos todos e eu nunca mais me lembrei do livro. Fomos ao café comer um bolo. Lembras-te?
- Ah, saíste do café a correr a dizer que ias buscar o livro, que te tinhas esquecido... E não voltaste.
- Pois! Subi as escadas, estavam às escuras, pensei que talvez já lá não estivesse ninguém... espreitei e vi  luz na sala. Galguei o resto dos degraus, mas fui travada no último degrau. Ele agarrou-me e beijou-me. Ele estava à minha espera. Ficou na escola, porque sabia que eu regressaria para pegar o meu livro. Primeiro assustei-me, quando me agarrou, mas quando vi que era ele... E foi cá um beijo. empurrou-me contra a parede, agarrou-me as mãos, levantou-mas para cima, fiquei esticada, as mãos dele nas minhas e encurralada pelo corpo dele. Encostou-se tanto a mim que parecia querer entrar dentro de mim. Aquilo crescia contra mim. Por fim, desenvencilhei-me daquele aperto, desci as escadas a correr.
- Não trouxeste o livro nem nada. Ele deu-to na aula seguinte com um, Aqui está o livro que me emprestou na última aula! Na altura fiquei espantada! Afinal, não tinhas ido buscar o livro!?
- Depois, começaram as aulas práticas e o meu instrutor é ele, como sabes.
- Mas tu ficaste toda contente por ser ele a dar-te as aulas de condução!
- E fiquei.
- Olha, depois do beijo, deverias ter pedido outro professor.
- Pois devia, mas estava entusiasmada com o facto de despertar algo num homem bem mais velho do que eu, era quase um desafio... E nunca pensei ir mais longe...
- Mas foste, Sara!
- Na primeira aula, ele teimava em pôr as mãos dele sobre as minhas, no volante, na manete das mudanças... Eu ria-me, pensava que ele me estava a orientar, que me achava um bocadinho aselha... As pernas tremiam-me um pouco, era a primeira vez que pegava num carro e ele punha-me a mão na perna e agarrava-ma, ria e dizia: Calma, eu estou aqui! Isto acontece a todos na primeira aula. Depois terminou a aula e perguntou-me se não lhe dava um beijo.
- E tu não deste, claro!
- Dei, ia dar-lhe na cara, um beijo de despedida e ele virou a cara e beijou-me na boca.
- Tu és doida! Incentivaste o tipo.
- Depois começou a telefonar-me para o telemóvel.
- Tu deste-lhe o número... Ó Sara, mas o que é que te deu?
- Não lhe dei número nenhum, ele é o dono da escola de condução, tem lá os dados das pessoas: nome, morada, telefone... 
A minha boca formou o O maior do mundo, os meus olhos ficaram maiores do que a minha boca aberta.
- Rita, ele telefonou-me a dizer que me ia buscar a casa, que queria ver-me. Eu ripostei. Disse que não queria que me telefonasse e que não lhe ia dar a minha morada... Mas, ele riu e disse:  Querida, eu tenho a tua morada, o teu telefone... Desliguei e não voltei a atender o telefone.
- E depois?
- Na aula seguinte, ele mostrou-se zangado, fartou-se de ralhar comigo cada vez que eu não tinha mãos suficientes para conduzir o carro, deixei o carro ir abaixo uma série de vezes, ia batendo num carro que estava estacionado, ia atropelando uma pessoa na passadeira. Ele travou a fundo e eu assustei-me. Ele mandou-me encostar para trocarmos de lugar, que eu estava muito nervosa, que precisava de descontrair... E de repente, vi-me em casa dele, na cama dele, a f---- com ele uma vez e, depois, outra.
- Sara, não fales assim, não digas palavrões.
- E foi bom, Rita, foi mesmo bom.
- Caramba, Sara, e agora?
- Agora, ele quer mais, e vejo-o, por vezes, estacionado ao pé da minha casa. E tenho medo que os meus pais descubram. E quero e não quero voltar a fazer aquilo com ele.
- Sara, não podes continuar com isso. Pára já, não deixes avançar mais. Pede outro professor lá na escola. Não te encontres mais com ele. Se ele te continuar a perseguir, vai à polícia. Ele pode fazer-te mal, não sei, mas pode. Ó meu Deus, Sara, não te encontres mais com ele. Se for preciso conta à tua mãe, pede ajuda a alguém. Sei lá!

Pronto, Francisco, aqui tens o que a destrambelhada da Sara fez. Achas que foi apenas um acto irreflectido? Tu também estás doidinho! É que sabe-se lá o que é que este acto irreflectido, como dizes, pode trazer!

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Mãe, tu vais morrer?



Querido Francisco, não tenho tido tempo nenhum para ti! Também, diga-se de passagem, não tenho tido grandes novidades. Nem grandes nem pequenas, aliás!
A minha mãe tem andado sorumbática, tristonha,  fica sempre assim quando vai fazer aqueles exames médicos... 
Há mais de dez anos que assim é!
Era pequena e, numa dada altura, não percebia muito bem, por que razão ela passava de estados de alegria a estados de tristeza tão profundos, assim, de repente, do nada. Era estranho, ela era sempre tão alegre, raramente se zangava e, quando isso acontecia, logo a seguir era uma risada pegada, abraços e beijos...
Lembro-me de a ver a chorar às escondidas! Quando me via ou dava por mim, limpava as lágrimas às costas das mãos e dava desculpas: estive a descascar cebolas, entrou-me um cisco para o olho, as lentes já não devem estar muito boas... À minha frente tentava sempre mostrar-se alegre. Agora sei que aquilo era tudo fita, tudo para inglês ver. Mesmo quando me parecia feliz, parecia que havia umas nuvens a pairar-lhe sobre os olhos verdes. Engraçado! Naquela altura, a minha mãe tinha uns olhos tão verdes, mas tão verdes que se olhasse para os campos secos decerto que os tornaria verdejantes só de os olhar... Agora sei, que aquele verde era de tanto chorar! E andou assim uns dias, a chorar, a esconder as lágrimas, triste... Um dia, perguntei-lhe:
- Mãe, tu vais morrer?
Ela olhou-me nos olhos, pegou-me ao colo, roçou a cara húmida na minha e disse-me com o sorriso mais bonito e luminoso que eu já vi:
- Não, não vou, é que não vou mesmo!
E foi como se tivesse ressurgido das cinzas! Levou-me ao colo para o quarto, pediu-me que lhe escolhesse uma roupa bonita, que íamos ao cabeleireiro, depois comer um gelado ou um bolo e marcar uns exames. Isso de marcar uns exames não percebi o que era, mas não devia ser nada de muito importante! 
Ela vestiu o vestido que eu escolhi, calçou os sapatos que eu escolhi, usou a mala que eu escolhi. Pintou os lábios com o batom que eu escolhi e pintou os olhos da cor que eu escolhi. Não sei se tudo aquilo combinava, mas eu estava tão feliz por ajudar a minha mãe a pôr-se mais linda ainda!
E lá fomos!
Depois, lembro-me de irmos à praia todos os dias de manhã: eu, a minha irmã e a minha mãe. Apanhávamos sol, íamos ao banho, passeávamos à beira-mar, apanhávamos conchinhas e pedrinhas, almoçávamos e, depois, voltávamos para casa. À tarde, a minha mãe ia fazer aqueles exames. 
Foi um Verão espectacular!
No fim de Agosto, a minha mãe foi a Lisboa a um hospital. Fomos todos: os meus avós (pais da minha mãe), o meu pai, eu e a minha irmã. Eu brincava com a minha irmã, ao fundo da sala vazia, ao pé dos meus avós. Não percebia por que razão estavam todos com aquele ar apreensivo. A minha mãe estava sentada a uma mesa e o meu pai, em frente, do outro lado, tinham os cotovelos em cima da mesa e brincavam com as mãos um do outro e olhavam-se. A minha mãe ria, o meu pai ensaiava um sorriso que, por mais que tentasse, não lhe estava a sair nada bem! 
Veio uma enfermeira com uma bata azul, espreitou e voltou para trás. A minha mãe sobressaltou-se. Pouco depois, voltou a surgir a mesma enfermeira que desapareceu de novo, sem nada dizer. Entretanto, regressou acompanhada de um médico de bata branca que se dirigiu logo à minha mãe. A enfermeira pediu desculpa ao médico, porque pensava que a doente era uma pessoa mais velha... 
As minhas orelhas pareciam antenas, apercebi-me que iam levar a minha mãe e corri para ela, agarrei-me com toda a força às suas pernas a gritar não sei o quê. A minha mãe baixou-se, pegou-me ao colo, beijou-me os olhos de onde me saltavam as lágrimas e disse-me a sorrir:
- Não chores, a mãe vai só tirar uma borbulha. Amanhã já vou para casa.
Agarrei-me ao seu pescoço como se fosse uma âncora, comecei a pensar nos dias em que ela chorava e chorava e chorava e tive medo, tive medo de não voltar a vê-la.
No outro dia, ela veio para casa e eu queria ver onde era o dói-dói da borbulha. Era na mama. Ela tinha um penso grande no seio esquerdo. 
Vou jantar, Francisco, depois conto-te o resto.

domingo, 26 de maio de 2013

A prof. de Ciências e o Acordo

Francisco, o final do ano aproxima-se a passos largos e há tanto para fazer, principalmente estudar, estudar, estudar, estudar... Aqui em casa anda tudo em papos de aranha, a minha mãe com resmas de testes para corrigir e trabalhos e composições e exposições a decorrer com os trabalhos dos alunos; o senhor raiz quadrada anda sempre de mau humor e a praguejar por causa dos maus resultados a Matemática, da falta de trabalho e de empenho dos alunos. Os resultados são péssimos, nas três turmas de nono que tem, o balanço foi terrível, três positivas em cada turma. O teste intermédio foi para esquecer, só houve duas positivas numa turma... ; a Francisca anda de volta da tese e não fala noutra coisa. Está cheia de medo! Ainda por cima entrou em conflito com a orientadora ou lá o que é, por causa do Acordo Ortográfico. Ela enviou o trabalho e a professora devolveu-lho todo rasurado, todo pintalgado de vermelho. A minha irmã perguntou que raio era aquilo e a orientadora respondeu-lhe que o trabalho estava cheio de erros ortográficos. 
- Erros ortográficos? Deve estar a brincar comigo, nunca ninguém me apontou um único erro, eu não dou erros ortográficos nenhuns...
- Agora dás, tens de escrever segundo o acordo.
- Está a pedir-me para escrever com erros? Qual acordo, qual carapuça! Eu só escrevo em português decente.
- Se teimares, serás penalizada.
E a Francisca telefonou logo à minha mãe e chorava e dizia que aquela anormal lhe tinha vermelhejado o trabalho todo, que queria que ela escrevesse em acordês, que era uma ignorante, uma burra com duas pernas e saias... A minha mãe ouviu, ouviu, ouviu e depois disse-lhe que estivesse descansada que lhe iria arranjar a lei que dizia que o AO é inconstitucional e que não está nem pode estar em vigor... E que se mesmo assim a penalizassem na nota que se ia para tribunal... A minha maninha ficou mais calma e disse que ia falar com a orientadora...
Olha, Francisco, eu até tenho sorte com esta coisa do AO, a professora de Português nem quer ouvir falar nisso, está sempre a dar exemplos de palavras acordadas que até dão vontade de rir, o que nos divertimos com os exemplos que ela arranja para vermos a aberração que é o famigerado acordo. Só a professora de Ciências é que é toda pró acordo, mas não conseguiu até hoje explicar-nos porquê, que é para uniformizar a língua portuguesa, que os portugueses e os brasileiros passam a escrever tudo do mesmo modo ou quase tudo. Desatámos a rir com este argumento tão disparatado e apresentámos logo mais de cem exemplos onde não há qualquer maneira de uniformizar a língua... A professora não conseguiu contra-argumentar e acabou por dizer que é lei e que as leis são para cumprir... E o riso voltou a estalar. A conversa acabou com vamos mas é dar matéria, porque vocês estão todos "feitos" com a professora de Português. O André perguntou se podia escrever uma frase no quadro em acordês para a professora lha explicar, porque ele, como era contra o acordo, não conseguia decifrar aquilo. Ela acedeu e no quadro apareceu: "Não me pelo pelo pelo de quem para para desistir". A professora ficou a olhar com uma cara... e foi uma enxurrada de gargalhadas. O Filipe levantou-se e escreveu: "Preciso de um medicamento para o nervo ótico."  Ah, essa é fácil, sorriu a professora: é um medicamento para os olhos. Ai isso é que não é, disse o Filipe, é para os ouvidos. O Gonçalo decidiu também atazanar a professora e saltou para o quadro, decifre esta, professora: "Não se fie em corretores, podem dar indicações erradas!" Mais uma vez a prof. ficou à toa.
- Professora, essa frase é ambígua, não sabemos se se fala de corretores da bolsa, se de correctores ortográficos! - disse-lhe.
- E este título de uma notícia: "Ninguém para este motorista!" - atirou a Linda.
A professora foi salva pela campainha.
Pois, Francisco, ela ficou com os neurónios todos queimadinhos. Acho que ela estava a rezar para a aula acabar logo, pois não decifrou nenhum dos enigmas apresentados. Quando contámos à professora de português, ela disse com um ar muito confrangedor, que mauzinhos! A minha mãe, quando lhe narrei o sucedido, partiu-se a rir. A Francisca aprovou e disse que cambada de carneiros, aceitam tudo. Será que já se deram ao trabalho de ler a aberração do Aborto Ortográfico? Não, claro que não! Que gentinha mais idiota!
Bem, vou dormir e sonhar com frases malucas escritas em acodês e mixordês!
O que é mixordês? É um tipo de salada-russa: mistura-se o AO de 45 com o AO de 90.



sábado, 27 de abril de 2013

A nova Linda

A minha irmã foi com a Linda ao cabeleireiro. O Rodrigo olhou, mirou, mexeu, apalpou-lhe o cabelo  e exclamou:
- Este cabelo tem sofrido horrores, bem-vinda, vou ver que milagre se pode fazer aqui. Pior do que está é completamente impossível!
A nossa nova amiga olhou-o desconfiada e muito pouco convicta...

A Francisca chegou a casa sozinha, perguntei-lhe pela Linda. Encolheu os ombros, que tinha desistido, que fez uma cena, porque a queriam mudar, que, que, que... A minha maninha estava desolada. Subiu e enfiou-se no quarto. Cada vez que não consegue algo, retira-se, encafua-se no seu mundo...
Não consigo acreditar! 
Francisco, a tonta da Linda, que ninguém reconheceu no bar, voltou atrás? Não percebo, todos a acharam engraçada, ela divertiu-se, brincou, foi uma Bruna alegre e bem-disposta!... Parecia que estava tudo no bom caminho. À noite, contou-nos que o pesadelo começara desde que entrara para a escola, que a gozavam por causa do nome, ao ponto de ela se transformar daquela maneira. Mas, agora, com a ajuda da minha irmã,  tinha-se apercebido que as pessoas não são feias, têm é de aprender a valorizar os seus pontos fortes... 
E agora desistiu!
E eu que estava tão contente! 
Na próxima aula vamos apresentar o trabalho de português, pensei que apresentaríamos também a nova Linda... 
A única coisa positiva nisto tudo é que consegui saber porque se esconde a Linda, assim, debaixo de trapos e maquilhagem horrendos.
A minha mãe disse-nos que se calhar tínhamos ido muito depressa ao pote, que se a mudança tivesse sido mais gradual e não tão radical... É que... devagar se vai ao longe!
Fui telefonar ao grupo para combinarmos melhor a apresentação do trabalho, marcámos um encontro para a hora de almoço, na biblioteca, antes da aula de português para ultimarmos tudo. A Linda disse que não podia ir que, na aula, faria o que tivéssemos decidido. Fiquei chateada, queria que tudo corresse bem, sem falhas nem enganos e agora a menina Linda não estava disponível... Que irresponsável!
No dia seguinte.
Chegámos à aula, a Linda não havia meio de chegar. Chegou a nossa vez, ligámos o computador, o projector... Estava a fazer a introdução ao trabalho, quando bateram à porta. A professora mandou entrar, como ninguém entrou, encolheu os ombros e foi abrir a porta. Olhámos quase todos para a porta aberta. Uma rapariga ruiva e sardenta espreitou. A professora olhou-a interrogativamente.
- Posso entrar, professora, estou atrasada, mas vejo que os meus colegas estão a principiar a apresentação do trabalho...
- Linda! - gritámos em uníssono.
Ela entrou, a professora ficou ao fundo da sala a sorrir e piscou-me o olho. Rodeámos a nossa nova colega.
Francisco, todos ficámos encantados, e afinal a Francisca conseguiu mesmo fazer da Linda feia uma Linda bonita.
Estava de calças de ganga, vestida como qualquer uma de nós, usava um pouco de maquilhagem... Parecia muito mais nova, quer dizer, parecia ter a idade que tem!
Quando cheguei a casa, a Francisca queria que lhe contasse tudo.
- Nem penses, ontem enganaste-me.
- Ora, Rita, diz lá que não foi por uma boa causa? Diz lá que não gostaram da surpresa?
Francisco, sabes por que razão a Linda não foi à reunião e chegou atrasada à aula? Pois, estava com a minha irmã. A minha mana é que lhe escolheu a roupa e que a maquilhou. E não me disse nada, a malvada!
E o trabalho? Ah, a apresentação do trabalho correu bem, Francisco, a professora adorou, os meus colegas disseram que foi o melhor trabalho, ficámos duplamente contentes... Ah, e a professora felicitou-nos  pelos dois trabalhos... Sim, Francisco, a transformação da Linda e o trabalho de grupo.


sexta-feira, 19 de abril de 2013

A mudança e a nova amiga, a Bruna

Sábado de manhã. O meu pai, a minha irmã e eu a braços com a cobertura da piscina. Aquilo pesa horrores, mais do que o meu dinheiro e o da família inteira. A minha mãe observava lá de cima da varanda com um sorriso. O meu pai perdia a paciência com a nossa falta de jeito, dizia ele, mas era mais falta de força, dizia eu!
Por fim, lá conseguimos tirar o largo e pesado oceano azul de cima da água azul turquesa que brilhava e rebrilhava e reflectia o céu... Lavámos a cobertura, colocámo-la a secar na rampa que dá para a garagem e toca a aspirar a piscina e a pôr tudo em ordem para receber o pessoal, depois de almoço: cadeiras, espreguiçadeiras, mesas, almofadas, mantas,  o grande chapéu de sol... tudo cor-de-laranja a dar um ar colorido à relva verde e viçosa acabadinha de cortar. Ah,  e as tochas...
A minha mãe preparou umas pizzas e almoçámos, ali à beira da piscina, estirados ao sol.
Logo depois, chegou a Linda. Se não fossem os malditos piercings e a horrorosa roupa fúnebre, nem a tínhamos reconhecido: trazia uns calções pretos, uma túnica preta adornada com tachas e as botas horrendas que nunca tira. 
Será que dorme com elas? Mas que pergunta mais idiota, Francisco.
A cara lavadíssima, branca, o cabelo atado com uma fita negra e as unhas pontiagudas sem verniz.
Logo a seguir, chegaram duas amigas da Francisca e a Margarida.
A minha maninha anunciou que à noite íamos a um bar, que a roupa não era problema, que entre a roupa dela, a minha e a da minha mãe de certeza todas ficaríamos bem servidas.
A tarde foi agradável, rimos, contámos anedotas, tomámos banho, jogámos, ouvimos música... A minha irmã fingiu o tempo todo que lia um livro e observava a Linda. É claro que a doce Francisca estava a preparar alguma, ela ia lá para a noite com uma Linda feia! Não sei como é que vai convencer a minha colega a vestir outra coisa que não sejam os seus trapos pretos de luto cerrado!
A tarde começou a cair e um vento frio a levantar-se. Arrumámos tudo e rumámos a casa, tínhamos de tomar banho, arranjarmo-nos e jantar...
A Francisca convenceu a Linda a tomar banho e a arranjar-se nos seus aposentos. 
- Tu vens comigo. A Margarida vai com a Rita, a Joana e a Marta preparam-se no quarto de visitas... - decidiu ela.
Eu comentava com a Margarida a decisão da minha irmã.
- Aposto que não vamos reconhecer a Linda que vai sair do quarto da minha maninha! 
A Margarida dizia que não acreditava, que ainda se iam zangar...
A minha mãe preparava o jantar com o meu pai lá em baixo e riam não sei de quê. Eu conseguia ouvir o riso e a voz da minha mãe.
- Rita, a tua mãe tem uma voz tão bonita, as aulas dela devem ser deliciosas!
- Sim. Margarida, sabem a morangos com chocolate!
- Que tonta, Rita, estou a falar a sério!
A minha irmã bateu à porta:
- Rita, empresta-me aquele vestido branco com o peitilho de renda e os teus sapatos cor de pérola... Vai-me buscar o casaco branco da mãe, aquele que eu gosto.
Olhei-a estupefacta, vestido branco, sapatos pérola, casaco branco!...
- Ah, empresta-me aí os teus brincos: as pérolas pequeninas e as outras maiorzinhas...
Entreguei-lhe tudo com um monte de perguntas a bailar-me na ponta da língua, mas ela virou costas e desapareceu.
A Margarida olhava para mim e sorria, enquanto pintava os olhos. Estava gira, de saia preta com lantejoulas e blusa rosa com uns desenhos bordados com lantejoulas pretas e cor-de-rosa, sapatos de salto pretos de verniz. 
A Joana e a Marta juntaram-se a nós já prontas também. Sentámo-nos na minha cama, à espera.
Do outro lado não se ouvia nada, a não ser a música da Francisca.
Decidimos descer, fomos ajudar a minha mãe na cozinha.
- Que lindas! - aprovou o meu pai, quando nos viu. - E a Francisca e a Linda? Deve ser uma tarefa difícil, a de convencer aquela menina a ficar mais apresentável.
- A Francisca consegue sempre o que quer! - disse a minha mãe. - Acho que vamos ter todos uma agradável surpresa. 
Mesa posta, comida a fumegar, um cheirinho de comer e de chorar por mais... A conversa decorria animada, quando surgiu pé-ante-pé a Francisca, seguida de uma rapariga completamente desconhecida.
 - Apresento-vos a Linda! - disse a minha irmã com o maior sorriso do mundo.
Como é que ela convenceu a Linda a tirar os piercings todos e a transformar-se numa princesa não sei, mas que a minha colega parecia outra, lá isso era verdade: tinha o meu vestido, os meus sapatos, o casaco da minha mãe, as pérolas nas orelhas em vez daquelas mil argolas que ela usava, nem a bola da língua, o brilhante do nariz, a bolinha preta da bochecha e a argola por baixo do lábio inferior escaparam. A maquilhagem disfarçou todos os buraquinhos!
- Meninas, sabem de que cor é o cabelo da Linda? - Perguntou a minha irmã com um brilhozinho nos olhos. - É ruiva. Já combinei com ela, amanhã vamos ao cabeleireiro mudar este negro azulado...
Nós olhávamos atónitas para aquela mudança que, pelos vistos, ainda não tinha acabado.
Jantámos e saímos.
- Quem não vai conhecer a Linda é o Gonçalo e o André, Margarida.
- Rita, apresentamos a Linda aos dois, dizemos que se chama Bruna e que é minha prima. Que acham? Topas, Linda?




sexta-feira, 12 de abril de 2013

Ó Deus, a vossa amiga já caiu no lodo!

O Trabalho de Português está quase pronto. Assaltámos os caixotes de apontamentos e de fotocópias da minha mãe,  do tempo dela da Faculdade. Ela contou-me que estudara Os Lusíadas e a obra de Fernando Pessoa... 
Que sorte, Francisco! Havia tanto material. Espalhámos tudo na garagem. Quem não achou graça nenhuma foi o senhor raiz quadrada! Ia-lhe dando um ataque, uma coisinha má,  logo que entrou na garagem e viu aquele festival de papéis e livros e sebentas por todo o lado, e nós sentados no chão, qual ilhas, rodeados por um mar de papelada, velha e encardida, por todos os lados, e ainda os portáteis, canetas, lápis... canecas com chá, pratinhos com biscoitos e línguas-de-gato.
Era quinta-feira, a Francisca telefonou  a dizer que chegava à tarde. Com um pouco de sorte chega a tempo de conhecer a Linda. A minha mãe ainda não viu a Linda, só chega lá para o fim da tarde. O meu pai ficou de tal modo fulo com o espalhafato que fizemos na sua querida garagem que nem nos olhou, só disse:
- Quero esta balbúrdia toda arrumadinha, meninos!
Olhei para o Gonçalo e desatámos a rir, ele não viu de certeza a Linda, aliás, ele não viu ninguém...
Pegámos no material escolhido e nos portáteis e levámos tudo para o escritório. Colocámos o restante  material nos caixotes e deixámos a garagem de novo em ordem, como o senhor meu pai gosta.
Estávamos já no escritório a trabalhar, era preciso inserir os novos dados descobertos, quando de repente soou a voz doce da minha mãe:
- Então, como vai o trabalho, precisam de ajuda?
Levantámos a cabeça e encostado à ombreira da porta, estava o mais belo sorriso do mundo nos maiores  olhos de esperança que conheço.
- Linda, apresento-te a minha mãe!
- Olá Linda, muito prazer em conhecer-te! Viva Gonçalo! Então, André e Margarida? Como vai esse trabalho? Falta muito?
- Estamos a ultimar, a enriquecê-lo com alguns dados do tempo dos dinossauros que encontrámos nas catacumbas do senhor raiz cúbica...
- Hummm! Raiz cúbica... estou a ver que se chateou convosco!
- Tudo sob controlo - disse o Gonçalo - já arrumámos tudinho.
- Mãe, a Francisca vem hoje!
- Ora bem, que tal uns moranguinhos com iogurte? Comprei-os agora, se souberem como cheiram...
E desapareceu rumo à cozinha.
- Rita, a tua mãe é muito bonita, és parecida com ela! Tem cá uns olhos!
- Chega de conversa, toca a trabalhar.
Não, Francisco, a minha mãe não ficou impressionada com a figura da Linda, quer dizer, pelo menos, não o deu a entender.
Estávamos a comer os morangos, quando irrompeu pela cozinha a minha mana:
- Também quero! Viva pessoal, tudo bem?
Abraçou e beijou a minha mãe que lhe esticou a taça que acabara de preparar.
- Bem, tu deves ser a Linda! Mulher, que se passa contigo? O Carnaval não passou já ou sou eu que já perdi o tino? Adoro esse estilo, vai ser um sucesso no próximo baile... não achas, Rita! Pareceremos todos saídos de um qualquer filme de terror...
Eu fiquei de boca e olhos enormemente abertos a olhar a cara da Linda. O Gonçalo confirmava e sustinha, como podia, o riso, prestes a estalar. O André olhava-nos a todos entre divertido e preocupado. Se a Linda se passa, pensava, vai ser um Deus nos acuda. A Margarida engasgou-se e tossia aflita.
Para ajudar à festa, surge o meu pai a dizer que a cadela tinha feito umas escavações, que os buracos estavam cheios de água, que tínhamos de ter cuidado para não nos atolarmos no lamaçal... Nisto, encara com a Linda e disse com a cara mais pesarosa do mundo:
- Ó Deus, demasiado tarde, a vossa amiga já caiu no lodo!
E foi um estardalhaço de gargalhadas, a Linda desatou a rir e nós ficámos uns momentos sem saber se devíamos rir também. E rimos. E olhávamos uns para os outros e ríamos cada vez mais. Por fim, entre gargalhadas:
- Rita, a tua família é extraordinária, vocês são o máximo, nunca me ri tanto na minha vida. 
Cada vez que nos lembrávamos da cara do meu pai, não aguentávamos, a Linda imitava a Francisca e ria, ria, ria...
- Linda, vamos destapar a piscina no Sábado, queres passar o fim-de-semana connosco? - perguntou a minha doce maninha. - Margarida podes vir também.
Percebi logo a estratégia da Francisca.
O André segredou-me um vão ficar com a água da piscina toda suja. Cala-te, atirei-lhe. Olha, só o duche antes do banho não chega tornou ele, tens de a passar por várias águas, insistia. Pára com isso, sussurrei-lhe, já zangada.
Apitaram lá fora, eram os pais dos meus colegas.
- Conta comigo, Francisca, no Sábado cá estarei.
Foram-se. A Francisca piscou-me o olho e subiu para desfazer a mala...




sábado, 6 de abril de 2013

Parece que viste um fantasma!

Formados os grupos, sem incidentes nem amuos, dispusemos as mesas  e ficámos à espera de directrizes... 
- Meninos, vamos trabalhar Fernando Pessoa e Camões,  Mensagem e Os Lusíadas. Vou dar-vos as indicações...
- Professora, podemos fazer em Power Point?
- Sim. A apresentação dos trabalhos fica ao vosso critério...
A professora distribuiu os temas pelos grupos. Ao nosso grupo calhou "O herói em Os Lusíadas e   Mensagem".
A Linda ficou sentada à minha frente, entre o Gonçalo e o André. Nunca estive tão perto dela! Começámos a fazer o plano do trabalho. Ela começou a dar a sua opinião e arrepiei-me, quando os meus olhos ficaram presos na bolinha prateada que ela tinha cravada na língua... Ela ia falando e a bola subia e descia! Os meus olhos começaram a percorrer-lhe o rosto, na bochecha, numa covinha, uma bolinha preta horrorosa, em torno da orelha direita uma quantidade de argolinhas  prateadas de vários tamanhos, na orelha esquerda uns bicos negros, no nariz um brilhante do lado direito, por baixo do lábio inferior uma argola preta. Que horror! Pensei. Como é que alguém se pode mutilar assim? Ela falava e eu não ouvia nada, só via a bolinha subir e descer, aparecer e desaparecer...
- Rita! - gritou o Gonçalo. - Que achas da ideia da Linda.
- Acho, acho, acho bem!
- Estás bem, Rita, parece que viste um fantasma! - disse o André a rir. 
- Deixa de ser parvinho! 
Não conseguia concentrar-me, os meus olhos saltitavam de um lado para o outro, do cabelo preto azulado e completamente desalinhado  para os olhos muito pintados de preto, para a boca, um buraco sombrio, para a bola, para as orelhas, para o nariz, para a covinha entre o lábio e o queixo, para a bochecha, para a roupa fúnebre, para a cara cheia de base escura de mais, para as mãos com umas unhas longas e pontiagudas, pintadas de negro... Tanto negro, tanto buraco, comecei a sentir-me mal, cada piercing fazia-me arrepiar, estremecer,  a minha cabeça divagava longinquamente... De repente, levantei-me e pedi à professora para sair.
- Estás bem, Rita? - perguntou. - Estás tão pálida!
- Tenho de ir lá fora, estou mal-disposta, professora!
A Margarida saiu comigo. 

Francisco, eu não vou conseguir fazer o trabalho com a Linda à minha frente, ela é horrível, consegue ser mais assustadora do que uma personagem do Walking Dead.

Regressámos à aula, troquei de lugar com a Margarida, fiquei de lado, assim não precisava de ver aquele espectro da morte à minha frente.
- Rita, só tu é que ainda não deste qualquer parecer em relação ao trabalho. Que achas?
A voz da Linda  soou-me melodiosa, doce... A primeira vez que falou, na última aula, a sua voz pareceu-me ameaçadora! Só agora me apercebi do tom jovial e doce da sua voz!
A professora começou a dizer que só dava mais uma aula de noventa minutos para fazermos o trabalho, que se não chegasse, teríamos de nos juntar na Biblioteca ou no lugar que nos conviesse mais. 
Temos quinze dias ao todo para fazermos o trabalho, depois seguem-se as apresentações...
A aula terminou, a Linda desapareceu, ficámos nós à conversa com a professora.

Francisco, a professora quer que nos aproximemos da Linda e que percebamos por que razão ela se apresenta assim. A Margarida diz que foi um trauma qualquer, que ela se esconde debaixo daquela capa negra... O André diz que ela é feia e que ainda se faz mais feia e que o nome dela só prejudica: 
- Vejam só, uma pessoa chama-se Linda, mas é feia, não consegue viver com essa realidade e faz-se mais feia ainda.
O Gonçalo riu-se a bandeiras despregadas da teoria do André e ainda atiçou mais a fogueira:
- Cá para mim, o único responsável é mesmo o nome dela, se se chamasse Ana, Inês, Bruna... podia ser feia à vontade, ninguém ligava... O problema é uma pessoa feia ter um nome que é a sua antítese. Todo o mundo goza: Olha que Linda tão feia! Onde estava o teu pai com a cabeça, quando te deu esse nome?
Não sei se conseguiremos ir a algum lado. Cá em casa, a Francisca continua a insistir que fará milagres com a Linda feia!


quinta-feira, 4 de abril de 2013

Eu NÃO quero a vossa amizade!

Pois é, tem sido difícil abordar a Linda. Ela isola-se e se nos vê aproximar, troca-nos as voltas. Na aula com a DT, pediu para falar, a professora deu-lhe a palavra. Ela levantou-se, tossicou: 
- Olha, eu já estou farta dos vossos olhares atravessados, não tenho pachorra para os vossos cochichos, não acho graça às vossas caras de parvos... Parem de olhar para mim como se eu fosse um ET. Vocês não são melhores do que eu, eu não preciso de vocês para viver, há umas horas nem vos conhecia, nem sabia que existiam. Não precisam de se esforçar para me tolerarem, para fingirem que querem ser meus amigos. Eu não quero a vossa amizade. Se alguém vos disse que tinham de ser meus amigos, enganou-vos. Eu sou eu e vocês são desconhecidos que eu tenho de tolerar porque vim parar a esta terrinha, a esta escolinha de gente metida, de gente que acha que pode salvar a pátria, os pobrezinhos, os sem-abrigo, os alienados... Que fique esclarecido de uma vez por todas, eu NÃO quero a vossa amizade!  Não me dirijam a palavra, porque eu não vo-la dirigirei... Tenho dito! Ah, não precisam de comentar, aliás, poupem-me aos vossos comentários. Obrigada, professora, pelo tempo de antena concedido. Até amanhã!
Francisco, ela pegou nas coisas e saiu, a professora nem teve tempo de dizer o que quer que fosse. Nós olhávamos uns para os outros, enquanto arrumávamos o material.
O André pegou na mochila e disse resoluto:
- Pronto, professora, tarefa inconcluída, por incompreensão e recusa da pessoa em questão.
Saímos da sala de cabeça baixa. 
- Rita, - chamou a professora - amanhã vamos fazer um trabalho de grupo. Fala com os teus colegas de modo a combinarem os grupos, incluindo a Linda. Os elementos do teu grupo serão: tu, a Margarida, a Linda, o André e o Gonçalo. Os outros grupos serão como quiserem...
Percebi logo a intenção da professora, a Linda vai ter de falar connosco mesmo que não queira: o Gonçalo é um espalha-brasas; o André tem um sentido de humor incrível, mas também sabe ser torto e inconveniente; a Margarida é engraçada, tem sempre uma palavra amiga, é boa aluna, é ponderada; e eu, a santa Rita, sempre pronta a pôr água na fervura...
- O trabalho será feito na aula, mas terão de marcar alguns encontros fora das aulas, em casa de algum, na biblioteca... onde quiserem. É necessário que consigam levar a Linda a encontrar-se convosco para a realização do trabalho. Rita, já sabes que confio inteiramente em ti. Tenho a certeza que conseguirás em conjunto com os teus colegas integrar a Linda na turma e, quem sabe, se não ficam todos amigos.
- Isso era uma grande vitória, professora! - conclui sorridente.
- Até amanhã, Rita!
- Xau professora!

segunda-feira, 25 de março de 2013

Quem namora pelo fato, leva o diabo no contrato

A minha mãe acha que não devemos condenar as pessoas, logo à partida, sem as conhecermos, só porque são diferentes de nós - Quem namora pelo fato, leva o diabo no contrato. A roupa não interessa, o aspecto também não deveria interessar, o importante é o que somos por dentro e o que está no  interior de cada um, não é visível aos olhos, é-o somente ao coração. Não devemos tecer juízos de valor, considerações..., antes de conhecermos as pessoas. Ficaram espantados com o aspecto da Linda, não estavam à espera..., compreendo, mas reprovo... 
Francisco, foi sobre a Linda a nossa conversa ao jantar!
O meu pai desculpou-nos, disse que também ele teria dificuldade em permanecer indiferente a tão estranha criatura e achou que os meus colegas até tinham algum sentido de humor... A senhora eufemismo lançou-lhe um olhar reprovador e o meu pai só não corou porque é demasiado moreno, mouro, como ele diz.
A Francisca ouvia calada, meditativa e olhava-nos com um sorriso traquina na boca bonita. Deve estar a preparar a sua intervenção apoteótica, pensei.
- Olha, Rita, convida-a para passar cá um dia connosco e vais ver a transformação da "piquena"! - disse ela a rir e a piscar-me o olho.
Pronto, se há alguém no mundo capaz de transformar uma gata borralheira numa princesa, é sem dúvida a minha doce maninha.
O meu pai apoiou logo:
- Faz isso, Rita! Já estou a imaginar a Linda a sair daqui linda...
- Não acham que estão a pôr o carro à frente dos bois? - lembrou a minha mãe. - Falam como se já fossem amigos íntimos da rapariga.
- Ora, mãe, a santa Rita trata disso! Amanhã já é a melhor amiga, a salvadora, a defensora da mártir Linda, a bruxa negra... - atirou a minha irmã, sorrindo e com um brilhozinho no verdor dos seus olhos grandes.
- Bem, Francisca, também tu...
- Sim, querida mana, Santa Rita, a defensora dos "cachorrinhos abandonados"...
- Mas, estão a falar de quê? - perguntou o meu pai. - Cachorrinhos abandonados?
- Isso são coisas nossas, pai, nem queiras saber... - atalhou a Francisca, piscando-me o olho.
Uma coisa é certa, Francisco, eu já estou mesmo a ver o rebuliço que a Francisca vai fazer à pobre da Linda. Até já estou a ouvir a água a correr na banheira, a ver a espuma a formar-se, as pétalas de rosa, os sais... Já consigo até sentir o cheirinho bom em toda a casa...
A água toda negra, no fim? Ó Francisco, és mesmo mauzinho! Temos de passá-la por várias águas? Pára com isso, Francisco! Que mau! Já não te conto mais nada! Conto? Sabes que conto! Tens-te em muito boa conta, tu!
Amanhã, vou falar com a Linda e como quem não quer a coisa, vou perguntar-lhe por que razão se esconde por baixo daquela maquilhagem e roupa fúnebres.
Olha, vou dormir, até amanhã!


sexta-feira, 22 de março de 2013

A Linda

Ele há gentinha muito parvinha, Francisco! Foi o que pensei de dois dos meus colegas, mas depois...

Vou contar-te o que sucedeu na aula com a DT. A professora avisou-nos que a nossa turma iria receber mais uma aluna. Eu pensei logo: esta turma parece mais um terminal do aeroporto, está sempre a sair e a entrar gente! Mas, mantive-me calada e atenta à explicação da professora. Era preciso acolhermos a colega da melhor maneira, uma vez que era a terceira escola que ela frequentava este ano. Não tinha conseguido integrar-se nas duas escolas por onde passou. 
Chama-se Linda. 
O Gonçalo e o André disseram logo que já estavam a ver qual era o problema da Linda... A professora mandou-os calar, mas eles continuaram, atrás de mim, a cochichar e a rir. Deve ser feia, feia, feia..., como diz a minha irmã da bruxa da história que a minha avó lhe conta,  e o nome não condiz com a personagem... Aí, desatou tudo a gozar com ela, parece que já estou a ver o filme, dizia o Gonçalo. Virei-me para trás e atirei-lhe um olhar fulminante, tiraram-me a língua e riram-se.
- Ó professora, não tem a fotografia da nova colega para vermos se ela é mesmo linda! - disse o André, arrancando uma gargalhada a alguns colegas.
Esta atitude valeu-lhe um valente raspanete! A professora não foi nada meiga, nada mesmo! Terminou o discurso, dizendo que não admitia que alguém  troçasse da colega. Mas, o Gonçalo insistia: 
- Era bom sabermos como ela é, para não haver surpresas!
A professora acabou por dizer que não sabia como era a colega, que só sabia da vinda dela para a turma e rematou a conversa com um, ora vamos lá trabalhar!
No fim da aula, a professora ainda disse que esperava que a turma recebesse bem a Linda  e que a fizesse sentir-se em casa. 
O André armou-se em chico esperto e disse trocista:
- Ó professora, aqui na turma quem é a Nossa Senhora dos aflitos e dos  desprotegidos é a Rita.
- A santa Rita! - afirmava, muito senhor de si, o Gonçalo, piscando-me o olho.
Dei-lhe um empurrão e desatámos a rir.
- Com que então santa Rita, eu já te dou a santa!

No dia seguinte, Francisco, estávamos na aula de Matemática, quando bateram à porta. O professor abriu e a funcionária trazia consigo a Linda. Ficámos todos a olhar! A Linda estava vestida de preto da cabeça aos pés. Parecia um corvo! O cabelo muito preto, pintado, e totalmente desgrenhado, os olhos eram um borrão negro, os lábios e as unhas pintados também de preto. Uma saia comprida, uma camisola larga e grossa, de malha, cheia de tachas, umas botas horrendas, desapertadas, uns cintos que se cruzavam pela anca e pela cintura, um cachecol enrolado ao pescoço... Até o professor ficou especado a olhar, não dizendo palavra. Olhávamos a rapariga, totalmente estupefactos... Por fim, acordámos, com a voz da funcionária a dizer: é a aluna nova, foi a DT que me mandou trazê-la à aula. O professor apontou um lugar vazio e nós continuávamos de bocas e olhos muito abertos. O professor começou a fazer perguntas à nova aluna, mas confesso-te, Francisco, não sei o que ele perguntou nem o que ela respondeu... Só pensava, ela precisa de tomar um grande banho, tirar aquele manto negro com que se cobre e vestir-se e pentear-se como qualquer pessoa da nossa idade. O Gonçalo ia gaguejando:
- Mas, isto é muito pior do que eu pensava!
E o André concordava, acenando a cabeça, incrédulo. E de repente, deixou sair um:
- Ai, Santa Rita, nos valha!
E foi um riso pegado, o professor bem tentava manter-se sério! Eu olhava para a rapariga, para o André, para o professor que não estava a perceber a razão daquele ai tão grande, nem o que tinha a santa Rita a ver com aquela situação...
- Creio que a santa Rita, desta vez, não pode fazer nada!... - disse eu com o ar mais desconsolado que podia haver.
O professor olhava-me inquiridor. E o Gonçalo deixou escapar:
- Isto é bem pior do que eu imaginava, é que nem dá para ver se ela é linda ou feia! Parece uma bruxa, a bruxa da história da minha irmã. 
A rapariga não ouviu, manteve-se quieta no lugar.
Agora, Francisco, não sei como vai ser, não me parece que a turma a vá aceitar, ela mete medo, pior, a Margarida disse logo que ela devia ter piolhos e que lhe metia nojo...
Hoje, ninguém falou com ela, todos se afastaram e eu também não consegui aproximar-me dela. Vamos ver como vai ser o dia de amanhã, ainda bem que temos logo ao primeiro tempo aulas com a DT.

domingo, 10 de março de 2013

Tenho dois namorados e...

Francisco, tenho andado ocupada: testes, trabalhos, estudar, estudar, estudar... Mas, pronto, cá estou para te contar acerca do baile de máscaras.

Chegámos ao salão e ao entrarmos, toda a gente se virou, nunca tinham visto tantas sevilhanas todas igualzinhas e, quando digo iguaizinhas... é porque éramos mesmo todas iguaizinhas! Fizemos o que a  Francisca nos pediu: um grupo ficou perto da porta, o outro perto do conjunto musical, ou seja, em lados completamente opostos. Ela desapareceu por alguns minutos. Dançávamos já todas animadas, quando apareceu a minha doce maninha com o Carlos... 
Lembras-te do Carlos, Francisco, o namorado de Lisboa da minha irmã. Sim, era do Cartaxo, mas estava a estudar em Lisboa.
O rapaz ficou meio à toa no meio de tanta sevilhana e tentou não perder a Francisca de vista. A minha mana, entretanto pediu-me que fosse com ela à casa de banho! Fiquei a olhar para ela, mas ela puxou-me por um braço e levou-me a trote. Na casa de banho, disse-me que estava à espera de outro rapaz e que eu tinha, de vez em quando, de me fazer passar por ela! Abri de tal modo os olhos, por detrás da máscara, que ela desatou a rir e a dizer que os meus olhos estavam prestes a saltar dos buracos da caraça para fora. 
- De vez em quando, tenho de fazer-me passar por ti? - balbuciei incrédula. E ela trocista:
- Sim, Francisca II, danças ora com o Carlos, ora com o Pedro. Percebeste ou tenho de fazer um desenho?
- Está doida? Só podes estar doidinha de todo! E quem é esse Pedro? 
- O Pedro é um rapaz que me adora, conheci-o numa festa na praia. É lindo, simpático, vais gostar dele, tenho a certeza.
- Francisca, isto é de doidos, vamos ser descobertas!
- Não vamos nada, eu danço com o Carlos, enquanto tu danças do outro lado da sala com o Pedro. Depois, eu invento uma desculpa, deixo o Carlos e troco contigo. Quando me vires surgir, dás uma desculpa ao Pedro... Eu apareço ao Pedro e tu ao Carlos e assim por diante... Vai ser divertido! Imagina, os dois a pensarem que estão a dançar comigo.
- Tu és doida varrida e ninguém sabe! Depois disto, se sobrevivermos, peço ao pai para te internar.
- Vai correr tudo bem, vais ver!
- Se eles descobrem?
- Não descobrem nada! Vamos lá! Agora eu fico com o Carlos e daqui a três músicas, trocamos. Encontramo-nos sempre a meio do salão, do lado das janelas. A que chegar primeiro, espera pela outra, Ah, temos de fazer com que as nossas amigas não se espalhem pelo salão, os dois grupos devem estar sempre no seu lugar, como combinámos. Mas, isso já está tudo mais que acertado. Olha, não te esqueças de rir, nem era preciso dizer-te, nisso és bem parecida comigo: a vida leva-se melhor a rir!
- Ai, Francisca, vou rezar a todos os santinhos para que isto dê certo! Queres dizer-me...  afinal, tens dois namorados, é isso?
- Não tenho nenhum, sou livre, completamente livre, mas eles pensam que sim, que sou namorada deles..
- Coitados, Francisca!
- Pronto, já cá faltava a defensora dos pobres e dos oprimidos! Eu não faço mal nenhum, nunca lhes disse que gostava deles, nem a um nem a outro... É a única maneira de se sentirem os dois felizes! E não penso ficar com nenhum dos dois, podes crer. 
Segui a minha irmã até à porta.  Ela dirigiu-se a um rapaz de cabelo escuro e olhos azuis, tocou-lhe no braço e disse-lhe qualquer coisa. Ele deu-lhe a mão e avançaram para o meio das outras sevilhanas, juntei-me a eles e, de repente, a minha irmã desaparecera e vi-me a dançar com o Pedro.
A minha maninha tinha ido para a outra ponta da sala dançar com o Carlos, Francisco! Ah, já percebeste!
Dancei três músicas com o Pedro, disse-lhe que voltava logo e afastei-me ao encontro da Francisca. Cruzámo-nos a meio do caminho, ela apertou-me a mão enluvada e seguimos cada uma para o seu lado.
- Não demoraste mesmo nada, a tua maninha estava a portar-se bem? - perguntou o Carlos, enlaçando-me.
Assenti com um gesto e rodopiei, levada no abraço dele, leve, leve, leve...
- Já sei, vais dar uma espreitadela à Rita! - disse-me, quando me viu afastar. Não demores. 
E mais uma vez, me vi entre os braços do Pedro. Era um abraço mole, molenga, preferia os braços do Carlos, fortes, prendiam-me, parecia ter medo que eu lhe escapasse, não sei! O Pedro passava o tempo a segredar-me ao ouvido e parecia feito de gelatina. Queria que as músicas passassem depressa para trocar de par.
E mais uma vez me vi entre os braços do Carlos:
- Francisca, tu  pareces duas pessoas: meiga, embora absorta, pensativa, a deixares-te levar como uma pena; depois, de repente, transformas-te e és um vendaval, uma tempestade e rodopias como um tornado, levas tudo à frente, levas-me... És realmente única, por isso te amo. Mas, tu não me amas, não é?
Escapei-me à resposta para ir dar uma vista de olhos à "Rita". Pelo caminho ia a pensar, a minha irmã mete-me em cada uma...
O Pedro abriu os braços moles para me acolher e disse:
- Isto de teres de tomar conta da tua maninha é uma boa chatice, não é?
Concordei, com vontade de matar a Francisca.
Estás curioso com uma coisa, Francisco? Ah, como fizemos quando viemos embora? Ah, foi fácil! Isso já tínhamos combinado antes.
À hora estipulada, o grupo juntar-se-ia à porta e, na confusão da despedida, no meio de tanta sevilhana, sairíamos, despedindo-nos todos com um até mais logo e pronto.
Bem, a minha última dança foi com o Carlos, ainda bem, gostei de dançar com ele, gostei de me sentir segura. Quando tiver um namorado, tem de me agarrar como o Carlos, fazer-me voar sem me deixar cair...
Não fiquei nada apaixonada pelo Carlos, és tonto, Francisco! Ele é muito mais velho do que eu, ele até é mais velho do que a Francisca...
E pronto, terminou o baile, juntámo-nos todas e, ala que se faz tarde. Despedimo-nos dos rapazes todos que tinham estado no grupo, incluindo o Pedro e o Carlos:
- Um resto de boa noite, Francisca, tira a máscara, queria um beijinho...
Acenei um não e afastei-me agarrada à minha irmã e à Joana. Pelo caminho, a conversa foi animada, mas eu só queria aterrar na minha doce caminha e dormir, dormir, dormir...


quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Preparativos para o baile

Que confusão estava o quarto da Francisca, a salinha dela, o quarto de vestir, a casa de banho! Eram vestidos, saiotes, xailes, perucas, meias, sapatos, véus, máscaras... Um amontoado de roupa imenso e acessórios e estojos de maquilhagem... A barafunda era tal que achámos melhor dividirmo-nos pelos outros quartos: o meu e o dos brinquedos. Separámos as coisas, repartimo-las  pelos quartos e fomos jantar apressadamente. Estávamos todas muito excitadas!
Depois, já mais descontraídas, vestimo-nos, mas sempre sob a supervisão da minha irmã.
Os vestidos eram lindíssimos, vermelhos com rendas pretas, justinhos ao corpo, abrindo depois em flor, num espalhafato de folhos até ao chão, arrastando um pouco atrás. As mangas eram também justas e folhosas. Parecia um desfile de flores viradas ao contrário! De repente, a Sónia exclamou:
-     - Francisca, os olhos...
Ficámos a olhar para ela, espantadas.  A aflição estampada no seu rosto fez-nos soltar uma sonora gargalhada.
- Os olhos vêem-se, meninas, e vão denunciar-nos... – insistia ela.
- Pois, não era para sermos todas iguais? – perguntava a Marta, concordando com a Sónia.
A minha irmã ria-se, encostada à porta do quarto.
-Também não é preciso exagerarem: Somos três com olhos verdes, não é preciso mais. E, depois a confusão, a pouca iluminação... Vai tudo correr bem, vão ver! Vai ser uma noite de estalo, para não esquecermos tão cedo... – rematou.
Todas vestidas, todas maquilhadas, penteadas a rigor... sapateávamos divertidas, rodopiando, esticando o peito para a frente e a cabeça para trás e um pouco de lado, batendo castanholas e soltando “olés”... E, claro, rindo a bandeiras despregadas.
Descemos as escadas, num alarido tal, que os meus pais vieram ver-nos:
- Mas que bela colecção de sevilhanas! – exclamou o meu pai.
- Olhem, lembrei-me de uma coisa engraçada – disse a Cláudia - vamos dizer a quem nos perguntar que nos chamamos... chamamos...  Francisca. Não era giro!
A minha irmã adorou a ideia.
Metemo-nos nos carros e os meus pais a rirem e a acenarem e a dizerem para termos juízo e Rita não te afastes da tua irmã, das tuas colegas e tenham cuidado e divirtam-se e vejam lá em que se metem e nada de beberem coisas que vos ofereçam e... e... e... E lá fomos todas a cantar e a bater castanholas.
Claro, que estávamos muito giras, parecíamos todas irmãs, Francisco. Nem sabes como foi, quando irrompemos pelo salão de baile... Tu não estás mesmo a ver, o que foi entrar uma quantidade de sevilhanas, todas iguais, mas iguaizinhas mesmo! Ficou tudo a olhar!
Ah, Francisco, a minha irmã antes de sairmos de casa, dividiu-nos em dois grupos... Não estás a perceber? Depois conto-te. Vou dormir. Tenho sono. Não, conto-te amanhã... Estou cansada. Pois, estás curioso, eu sei!...