domingo, 20 de setembro de 2015

Preservativos andantes

Chegámos.
Um gritou, como se não tivéssemos dado por isso:
- Chegámos, pessoal.
Saímos do autocarro aos atropelos, aos empurrões, animais a saírem da jaula...
- Calma, meninos, não tenham medo que ninguém fica aqui...
- Meninos?!, professora? Ah, claro, para os professores e para os nossos pais... somos sempre criancinhas, quase acabadas de nascer.
Fomos saindo e corremos para buscar as mochilas.
O Luís ficou de boca aberta a olhar para os vários preservativos gigantes e coloridos a passearem-se pela rua, numa algazarra descomunal. 
- Hei, Luís, a tua mochila...
Acabou por encolher os ombros e procurar o seu saco no meio dos outros que estavam ali, no meio daquela grande confusão. O Luís estava espantado e surdo, só tinha olhos para aquele grupo de cores chamativas que ia descendo a rua.
No fim, já na posse dos nossos pertences, juntámos-nos aos professores. 
Só restou uma mochila. O motorista chegou-se ao pé do grupo barulhento e disse:
- Alguém se esqueceu desta sacola.
Olhámos uns para os outros, e depois de cinquenta e tais não é minha, não é minha, não é minha... O Zé informou:
- Ah, essa é a mochila do Luís.
Todos os olhos procuraram o Luís. Do Luís nada! Onde está o Luís?, onde pára o Luís?, aonde foi o Luís?, alguém viu o Luís?, mas será que ninguém viu o Luís?, mas onde é que se meteu o raio do rapaz?...
Os olhos alongavam-se até ao horizonte e do Luís nem a mais pequena sombra.
Mais um chorrilho de perguntas retóricas: quem viu o Luís?, alguém viu o Luís depois de sairmos do autocarro?, onde estava?, com quem estava?, estava a fazer o quê?. a falar com quem?...
O Zé, por fim, falou: ele ficou a olhar para uns preservativos andantes, foi o que vi. Às tantas foi atrás deles para ver para onde iam.
O Rafael, sempre danado para a brincadeira, alvitrou:
- Ai, meu Deus, e se os preservativos foram para onde costumam ir!...
E houve sermão e missa cantada: deixa de ser engraçadinho!; tu és parvo ou quê?; um colega teu desapareceu e tu estás com piadinhas!, recolhe o teu espírito, parvo...
A visita de estudo começava bem! 
Os professores dividiram-se: um ficou a tomar conta de nós; outros foram à polícia, outros às informações. 
Mais tarde, apareceu o Luís, todo sorridente, com a professora de História. A professora não sabia se havia de rir ou de mostrar cara de poucos amigos...
E foi assim que uma visita de estudo ficou comprometida, por causa de uns preservativos coloridos, às tantas, com sabores a morango, maçã ou laranja, que se passeavam pela rua e que faziam parte de uma campanha de prevenção.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Há sempre uma ovelha ronhosa...

Olá, Francisco!
Bons olhos me vejam! Obrigada, amigo! É sempre bom sermos recebidos calorosamente.
Novidades? Pois. Não sei se o que tenho para te contar se pode chamar de... novidade! Para mim, novidade é sinónimo de algo bom. O que não é o caso! 
A minha turma recebeu três alunos de NEE e, já sabes como é, há sempre alguém que não concorda que haja alunos destes na turma, que são atrasados, que só nos lixam a vida, porque os professores perdem tempos infinitos com eles... E para quê? Eles não aprendem, eles são burros, eles deviam estar em turmas especiais... mais, em escolas especiais. 
A DT falou connosco sobre a importância da integração destes alunos na sociedade... Falou que nós tínhamos um papel muito importante na vida escolar destes novos colegas... Falou, falou... E tudo o que disse tem lógica e está certo. Ah, a professora falou connosco numa aula em que esses alunos não estavam, para nos preparar, para nos dar a conhecer os seus problemas, e para nós podermos fazer perguntas sem ficarmos inibidos com a presença deles... 
Uma menina é autista, um rapaz tem uma doença degenerativa e soubemos que a todo o momento pode morrer, desloca-se numa cadeira de rodas, não tem força nas pernas... É um dó olhar para ele. Quando falta, fico logo a pensar que não vai voltar, e a professora também fica preocupada, que eu bem vejo ela a olhar para o lugar vago... O terceiro aluno não fala, é mudo, emite uns sons que mais parecem grunhidos e fica desvairado, quando quer comunicar e não consegue fazer-se entender... 
Eles não vão a todas as aulas! 
Depois da DT nos falar sobre estes colegas, houve logo dois alunos que perguntaram se não podiam mudar de turma. A professora não gostou da sua atitude, porque percebeu logo que o problema era os colegas diferentes. Eu olhei-os estupefacta. Que falta de sensibilidade! Todos diferentes, todos iguais! A Rafaela disse que não lhe pedissem para ter paciência com esses... que fossem para outra escola... a Ana concordou com a Rafaela e disse uma série de coisas que nem te vou contar. A professora tentou fazer-lhes ver que estavam erradas, mas foi em vão. Elas disseram que estavam fartas de "défices" e de toda a gente (professores e funcionários) os tratarem como se fossem alunos normais... mas que depois na avaliação... era testes adaptados, perguntas de caracacá, que passavam sempre de ano, sem fazerem praticamente nada, que os professores deviam era dar atenção aos alunos normais e deixar os outros, que só perdem tempo com gente que não aprende... Sei lá! Foi feio e mau o que disseram! Para ajudar à festa, o João e o Daniel decidiram juntar-se à Rafaela e à Ana. Armou-se uma discussão de todo o tamanho na aula e a professora acabou por mandá-los calar de uma vez, avisando-os que não toleraria faltas de educação e que nem pensassem em tratar mal os colegas...
Quando saímos da aula, o grupo do contra cruzou-se com os colegas de quem tínhamos estado a falar e passaram de nariz no ar, ignorando-os. A Rafaela esbarrou na menina autista, a Laura,  e gritou-lhe, sai da frente anormal. A Laura, primeiro, ficou triste, mas, a seguir,  reagiu e pregou um estalo na cara da Rafaela. Pegaram-se, a Laura tem uma força!... Tu não estás bem a ver, Francisco! Vieram duas funcionárias a correr para separar a briga, mas foi difícil!
Resultado, a Laura não pode ver a Rafaela à frente, diz que ela é mal educada e má. A Rafaela chama-lhe anormal entredentes. Já todos os professores tiveram uma conversa connosco e, mais especificamente,  com o grupo do contra. A Rafaela é a única que continua a destratar os colegas...

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Conheceu-o no Facebook

Francisco, esta gente anda toda louca!
Uma colega minha, a Telma, tem uma irmã de treze anos que conheceu um rapaz no Facebook. Ele é do Porto, isto é, ele disse-lhe que era do Porto. Mas, pode não ser!
Ele, na foto de perfil, aparenta ter 18, 19 anos, tem olhos azuis, diz medir 1.80m, tem cabelo escuro e disse à Vitória, a irmã da minha colega, que estava apaixonado por ela. "Conheceram-se" em Outubro, falavam todos os dias no chat. Depois trocaram os números de telemóvel e passaram a enviar mensagens a toda a hora. 
A Vitória convidou-o para vir ter com ela um dia para se conhecerem, mas ele disse que não podia, pois trabalhava e estudava. A "coisa" ficou por ali, continuaram as conversas no chat, as mensagens e os telefonemas.
A garota era boa aluna, mas depois de conhecer o Pedro, parece ser este o nome do rapaz, as notas começaram a baixar, a baixar... Ela começou a esconder os testes com más notas, a não dar os recados da DT à mãe, começou até a faltar às aulas para estar a enviar mensagens ao Pedro do seu coração.
As notas saíram, ela teve 7 negativas. 
A mãe confiava na miúda, ela tinha sido sempre tão certinha, tão educada, uma jóia de menina! Na reunião de Encarregados de Educação, a mãe ficou a par das faltas, das cartas enviadas pela DT que nunca chegaram, dos recados na caderneta que nunca viu nem leu... A senhora ficou para não viver! 
Os pais ralharam com a filha, puseram-na de castigo, tiraram-lhe o telemóvel, o computador... e incumbiram a Telma de andar em cima dela. Nos intervalos, a Telma não podia tirar os olhos de cima da Vitória e tinha de se certificar que ela entrava mesmo na sala de aula. A Telma não estava a gostar nada desse papel e não queria que a irmã a visse como o seu inimigo público número 1 e pediu-nos, a mim e a mais dois colegas, que a ajudássemos a vigiar a irmã, sem darmos muitos nas vistas, claro. A mãe começou a ir assiduamente à escola falar com a DT e parecia que a garota estava a melhorar. 
Mas, afinal, o portar-se bem, o não ter ficado grandemente chateada com a falta do telemóvel e do computador era só fachada. Ela andava a remoer uma vingançazinha! Continuava a manter contacto com o Pedro através dos telemóveis das amigas; quando a mãe não estava em casa, telefonava-lhe do telefone fixo e acedia ao Facebook através do computador da Telma ou de outro que estivesse disponível. 
Hoje, a Telma contou-me que a irmã fugira para o Porto na passada sexta-feira, depois das aulas da manhã. Esteve na aula com a DT (se ela faltasse, a professora telefonaria logo à mãe) e depois, meteu-se no comboio e, ala que se faz tarde, rumou ao Porto. 
Às seis e meia, ela deveria estar em casa, não chegou, às sete horas também não... A Telma e a mãe desataram a telefonar para todas as colegas da Vitória. O telemóvel dela não estava no lugar onde a mãe o guardou. Telefonaram-lhe. Não atendeu. Telefonaram-lhe um cento de vezes. Nada. A melhor amiga  dela, a Vanessa, disse que talvez soubesse onde  estava a Vitória. Que lhe ia telefonar e que daria notícias, logo que soubesse alguma coisa de concreto.
O pai, quando chegou, foi à polícia participar a fuga da filha e ficou toda a gente a aguardar notícias. 
A Vanessa conseguiu contactar com a Vitória, soube que ela tinha acabado de chegar à estação do Porto. Disse-lhe que não saísse de lá, pois a polícia já andava à procura dela... A polícia daqui comunicou para lá... E eis que tudo correu bem e a Vitória voltou sã e salva para casa.
Agora, Francisco, ouve bem isto:
A Vitória ia ter com um indivíduo que nunca viu mais gordo. A semana passada, na escola houve uma série de conferências sobre a violência, e os perigos da Internet foram abordados. Ela estava mais do que alertada e mete-se num comboio para ir ter com alguém que "conheceu" na Net!
A polícia disse que ela teve muita sorte, pois a esta hora já poderia estar do lado de lá da fronteira numa casa de alterne ou numa situação muito pior... Através do endereço que a Vitória tinha com a morada onde ela e o indivíduo se encontrariam, a polícia apanhou o sujeito... Não tem a idade que disse ter, a foto do Facebook não é dele... Tudo mentira! Trata-se de um pedófilo! Vê lá na alhada que a miúda se poderia ter metido.
Na escola, ela foi contar à DT o que tinha acontecido e  rematou a conversa, dizendo, "agora já todos sabem do que sou capaz de fazer, fugi uma vez, posso fugir mais duas ou três e até desaparecer. Eles que tenham muito cuidado comigo". A DT parece que lhe vai arranjar umas consultas de psicologia. A Telma anda de rastos, nem parece a mesma, só diz:
- O que é que deu à minha irmã. Ela não era nada assim!
Pronto, Francisco, anda ou não anda tudo louco?

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Conferências, roubos, sermões

Olá Francisco!

Estás contente por me veres? Eu também estou feliz por estar aqui contigo.
Como vão as aulas? Bem. Os meus colegas? Ah, esses têm dias: dias em que se portam mais ou menos, dias em que se portam pior, dias em que nem vale a pena falar... Os professores? Uns mais desanimados; outros vão trabalhando com picos de humor, altos e baixos, estás a ver?; outros nada os abala ou parece não abalar, aparecem sempre com o seu mais belo sorriso e fazem das tripas coração para ver se tudo dá certo: exasperam, quando não respondemos acertadamente; rejubilam, quando estamos dentro da matéria e quando "fazemos bonito", como diz a Victória, uma colega brasileira que entrou há pouco tempo para a turma. 
A minha turma continua a ser mais concorrida, ao nível de chegadas e partidas do que o terminal do aeroporto de Lisboa, como dizia a nossa DT o ano passado. Quanto a isso, nada mudou: há sempre alguém que se foi embora, há sempre alguém que acabou de chegar.
Novidades? A DT pregou um valente raspanete aos meninos "armados aos cucos" e às "meninas metidas a bestas", segundo a nova colega. 
O Paulo decidiu roubar os telemóveis a todos os incautos e fazê-los desaparecer, foi um ar que lhes deu. A par dos telemóveis, foi dinheiro, ipads, consolas, óculos de sol... Tudo o que caiu na rede do Paulo era peixe.
Como aconteceu uma coisa destas?
Francisco, a professora já tinha avisado que não levássemos coisas muito valiosas para as aulas, que levássemos telemóveis velhos, só para estarmos contactáveis, os outros valores eram para ficar em casa. O pessoal adora desfilar com o seu iphone novo, o seu ipad do último modelo, a consola portátil mais fixe do mundo e dos arredores, o relógio da marca x... Enfim, chegavam a troçar daqueles que não levavam para a escola os seus objectos de maior valor.
O Paulo, quando era chamado ao quadro, levava todo o "arsenal" consigo: telemóvel e ipad pendurados no pescoço, consola... Algumas coisas, colocava-as na secretária da professora. Depois, acabado o exercício, recolhia tudo e ia para o seu lugar. Ele lá sabia porquê.
Fomos à Biblioteca assistir a uma conferência sobre a violência, deixámos tudo na sala, a professora fechou a porta à chave e levou-a consigo. A palestra duraria 45 minutos, depois regressaríamos à sala, porque a aula era de 90 minutos.
Não sei como, o Paulo saiu da Biblioteca, entrou na sala e limpou tudo o que havia de valor. Ninguém deu pela sua saída nem entrada. Quando regressámos à sala, foi a professora quem abriu a porta... Uma vez, sentados, estivemos a conversar um pouco sobre a conferência e... de repente... começou tudo a queixar-se: uns que lhe faltava dinheiro, outros não tinham os telemóveis... Faltava isto e aquilo. A professora começou a dizer que era impossível faltar alguma coisa, pois tinha sido ela a fechar e a abrir a porta e toda a gente viu e houve até quem confirmasse... Gerou-se uma confusão dos diabos, começaram a desconfiar uns dos outros, a apontar a, b e c. A professora pediu a todos que se sentassem e pregou-nos um sermão daqueles de "caixão à cova". Tudo apontava para o Paulo, houve até quem o visse sair da Biblioteca, tendo regressado pouco depois. Ele desculpou-se, dizendo que fora à casa-de-banho. A professora perguntou-lhe "com ordem de quem é que saíste da palestra?" Ele embatucou. Os olhos da professora pareciam querer sair-lhe das órbitas, enormes, verdíssimos. Estava tudo em silêncio, só se ouvia a voz da professora. Ela estava zangada, zangadíssima, e eu, Francisco, vê tu, a pensar, mesmo a ralhar, mesmo quase a gritar connosco, a professora tem uma voz lindíssima, mais bonita só a da minha mãe...
Agora, Francisco, vais ficar pasmado com o que aconteceu. A professora dirigiu-se ao Paulo e disse-lhe:
- Tens dez minutos para entregar tudo o que levaste daqui, depois, chamo a polícia.
Nós pensámos que ele ia barafustar e dizer que não tinha nada a ver com o desaparecimento de coisa nenhuma. Mas não! Ele levantou-se, saiu da sala. Pensámos, vai-se embora e não volta...
A professora começou a dar aula como se nada tivesse acontecido.
Bateram à porta, a professora olhou para o relógio, sorriu, foi abrir a porta. Era o Paulo. Trazia um saco com todos os haveres dos colegas. Despejou tudo na secretária da professora. Tudo voltou para os seus donos. Faltavam apenas alguns telemóveis. A professora olhou para ele com aquele olhar interrogativo. Ele foi ao caixote do lixo e trouxe os objectos mais humildes. Entregou-os. Chegou a hora da saída. A professora, mais uma vez, falou que aquelas "coisas caras" eram para ficar em casa. Alguns e algumas quiseram argumentar com a professora... Mas esta rematou, dizendo que da próxima vez que tal acontecesse não moveria um dedo, uma palha, para que lhes fossem restituídos os seus pertences. Saímos e a professora fez sinal ao Paulo. O Paulo ficou para trás, nós fomos para a aula de Matemática. O Paulo chegou 15 minutos atrasado e estava com cara de quem tinha estado a chorar...

sábado, 11 de janeiro de 2014

O 2.º período está a começar bem, está!

As aulas já recomeçaram, Francisco, e a minha turma decidiu começar em grande.
Estávamos no intervalo grande. Tínhamos estado na conversa no bar. Falámos sobre as férias, sobre as notas, enfim, estávamos contentes com o recomeço das aulas. Tocou, eu e mais cinco colegas dirigimo-nos para a sala de aula. A professora chegou logo com o seu grande sorriso. Sentámo-nos, escrevemos o sumário, corrigimos o trabalho de casa. Éramos sete: quatro alunas, dois alunos e a professora. Ela olhou para o relógio várias vezes e, por fim,  perguntou onde estavam os outros alunos. Encolhemos os ombros. 
- Bem, vou fazer a chamada, já passa mais de um quarto de hora...
Fez a chamada, marcou falta aos vinte e dois alunos que não estavam e pediu-nos que abríssemos o livro.
De repente, ouviu-se um barulho lá fora, no corredor. Abriram a porta com força e entraram ao molho dentro da sala e aos empurrões. A professora zangou-se e mandou-os sair. Nós dissemos:
- Já têm falta!...
Eles saíram, como entraram, aos berros e aos empurrões. Foram-se. A professora fechou a porta e prosseguiu com a aula. 
Tinham decorrido uns dez ou quinze minutos, quando bateram à porta da sala. A professora foi abrir e deparou-se com uma senhora de estatura média e um homenzarrão enorme e forte, os pais do Ricardo.
- Queremos falar consigo - disse a mãe do meu colega.
- Desculpe, mas agora não posso, estou a dar aula.
- Queremos perguntar-lhe por que razão está a dar aula somente a cinco alunos? - perguntou, com maus modos,  o brutamontes do pai do Ricardo.
- São seis alunos - respondeu calmamente a professora.
- Ou seis. A senhora não deixou os outros alunos entrar porquê? - questionou a mãe do meu colega.
- Porque chegaram muito atrasados... Mas, eu não vou falar com os senhores agora. Estou a dar uma aula. Bom dia!
A professora fechou a porta, deixando-os lá fora a praguejar. Nós ouvíamo-los, apesar de não conseguirmos perceber o que diziam.
A professora ficou nervosa e nós tentámos acalmá-la.
Francisco, o Ricardo, como a professora não o deixou entrar, telefonou aos pais e os pais, em vez de perguntarem ao filho o que se tinha passado, correram para a escola para pedirem satisfações à professora. 
Mas a história não acabou assim! Os pais do Ricardo foram à procura da DT e fizeram queixa da professora, disseram-lhe que a professora, além de não deixar os alunos entrarem na sala de aula, era uma mal-educada e que a DT tinha de a pôr no lugar, de abrir um processo contra ela... Que não queriam ver o filho com falta à disciplina, porque se ele não estava na aula, foi porque a professora não o deixou entrar... E que ficavam à espera de saber o que ia ser feito contra a professora por causa daquela "história", que "aquilo não ia ficar assim, isso é que não ia, que ela não sabia com quem se tinha metido"...
A DT estava passada, branca, eles os dois aos gritos no corredor, a professora a pedir que se acalmassem e a tentar levá-los para a sala de atendimento aos encarregados de educação. As funcionárias não sabiam o que fazer. Os alunos saíam das várias salas e ficavam por ali a assistir àquela confusão...
Contei à minha mãe e ela perguntou-me:
- Como é que os pais vão bater à porta da sala de aula? Os funcionários da portaria deixaram-nos entrar porquê? Os pais só podem entrar para ir à secretaria, falar com o DT, com a Direcção, não podem ir bater à porta das salas de aula, interromper aulas... 
A minha mãe tem razão, mas a verdade é que eles entraram na escola, bateram à porta, importunaram a professora, interromperam a nossa aula e fizeram e disseram o que lhes deu na cabeça.
Enfim, Francisco, o segundo período está a começar bem!

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Onde é que a Sara se enfiou?

Ó Francisco, estou preocupadíssima com a Sara! Outra vez? Sim, outra vez, Francisco. Claro que não tenho idade para ser mãe dela, tu dizes cada uma! Eu conto-te, foi para isso que vim ter contigo, para desabafar, para me dares uma ajuda, sei lá!
A mãe telefonou para cá, para falar com a Sara. Quem atendeu o telefone foi a minha maninha. Já sabes como ela é, estava ensonada, não deve ter sido muito simpática... Respondeu à senhora: Aqui não há Sara nenhuma! A mãe da minha colega deve ter insistido e a Francisca tornou: Ó minha senhora, é engano,  já lhe disse que aqui não vive nem está Sara nenhuma. Bom dia. Bom ano. E desligou a resmungar. O telefone voltou a tocar. Eu ia para pegar no auscultador, mas a minha mãe atendeu do quarto dela. Adormeci momentaneamente. Acordei com a minha mãe a mexer-me no cabelo: Rita, sabes onde está a Sara? Esbugalhei os olhos de espanto! Não sei. Em casa dela. Só então percebi que a Sara, que a minha irmã dizia não estar ali, era a SARA! Rita, a mãe dela está farta de lhe ligar para o telemóvel! E ela não atende. Ela disse que vinha passar o fim de ano contigo, por isso, a mãe telefonou para cá.
- Ó mãe, eu não combinei nada com a Sara. Ela mentiu à mãe! Caramba, ela é completamente doida.
- A mãe pensava que ela estava aqui, a senhora ficou sem conseguir dizer palavra. Rita, telefona à Sara.
Peguei no telemóvel e liguei-lhe. Chamou, chamou, chamou... e nada.
- Ela não atende.
- Onde é que essa miúda se enfiou?
- Não sei, mãe!
- Estará com o namorado?
- No momento, ela não tem namorado nenhum... Que eu saiba! E agora?
- A mãe diz que vai esperar mais um pouco e depois vai à polícia. Bem, vamos dormir mais um bocado, se conseguirmos! Mais tarde, volta a ligar-lhe!
Disse que sim com a cabeça e mergulhei a cabeça na minha almofada fofinha. Não consegui dormir mais. Fartei-me de pensar onde é que ela poderia estar. De repente, lembrei-me do professor de condução, mas afastei logo essa ideia. Não. Ela não é tão parva assim! Ela não se ia meter outra vez com esse tipo! Voltei a telefonar mais um cento de vezes, voltei a não obter resposta. Acabei por adormecer e sonhar com a Sara, aflita, presa não sei onde; com o professor de condução, sorridente, a piscar-lhe o olho e a fazer-lhe boquinhas; com a mãe da Sara, a torcer as mãos, nervosa; com a minha irmã a refilar, a refilar e a refilar; com a minha mãe a pedir que me lembrasse de algo, de alguma pista, que nos pudesse levar à Sara; com o meu pai a dizer: "Essa menina precisa é de uns açoites bem dados!"...
Acordei a transpirar e cansada com a voz da minha mãe a chamar:
- Venham almoçar, já é tardíssimo!
Ao almoço, o tema da conversa foi a Sara. Todos nos perguntávamos, onde estará a destrambelhada da Sara?
A Francisca disse-me para telefonar às minhas colegas, às que se dão também com a Sara... podia ser que elas soubessem alguma coisa.
- Essa tua amiga não é boa da cabeça, Rita! Então, ela diz lá em casa que vem passar o fim de ano contigo e não te diz nada.
- Ela não me disse nada, Francisca, porque já sabia que eu não ia concordar com o esquema. Ela foi para qualquer lado, sabe-se lá com quem e, para a mãe a deixar ir, disse que vinha para nossa casa. 
- Não percebo é o silêncio dela, devia ter atendido o telefone. A mãe ia com certeza ligar-lhe...
- Ó mãe, às tantas tem o telefone no silêncio ou ficou sem bateria!
Francisco, estávamos nesta conversa, quando a campainha soou. O meu pai foi abrir a porta e do outro lado, toda sorridente, estava a Sara. Irrompeu pela casa, foi ter connosco à cozinha e disse quase aos gritos:
- Estou metida num grande sarilho, Rita!
Ficámos todos a olhar para ela, completamente surpreendidos, abismados: a minha irmã deixou cair a colher no prato e levou a mão à boca, para não deixar sair alguma asneira, com certeza; A minha mãe, com uns olhos enormes, olhava-a, olhava-me, olhava o meu pai que ficou encostado à ombreira da porta a abanar a cabeça.
- Onde estiveste? - perguntei.
- Isso não interessa agora, tinha o telefone no silêncio e, quando vi, tinha milhares de chamadas não atendidas: a minha mãe ligou vezes sem conta, tu ligaste e deixaste mensagens... Eu tinha dito à minha mãe que estaria aqui!
- A tua mãe ligou para cá e já sabe que não passaste cá a noite! - disse a Francisca. - Sabes, o melhor é contares onde e com quem estiveste. A tua mãe, entretanto, vai ligar à polícia. Meteste-te numa bela embrulhada.
- Ó Rita, posso falar contigo a sós?
Olhei para a minha mãe e ela assentiu. Fomos para o escritório.
- Sara, telefona à tua mãe e diz-lhe que estás aqui e que depois lhe contas o que aconteceu, não vá ela ligar para a polícia.
Ela ligou à mãe, que estava tudo bem, que estava cá em casa, que depois lhe contava o que sucedera, que não estivesse preocupada... A mãe disse-lhe que a vinha buscar.
Queres saber por onde ela andou? Pois, eu também queria. Não, Francisco, ela não me disse. E mais, disse-me que ia dizer à mãe que ela tinha percebido mal, que não era comigo que vinha passar a noite, era com outra Rita.
Outra Rita? Há outra Rita, vossa amiga? Claro que não, Francisco, não há outra Rita, só eu!
Bem, a mãe da Sara chegou, ela pegou nas coisas e foi-se e eu estou aflita, será que as coisas se vão resolver. Ela disse que me telefonava, mas até agora nada.
Ela é grande, que se cuide?! Só tu me fazias rir, Francisco. Tens razão. Se ela me ligar, ligou; se não ligar, não ligou. Olha, vou ler!



sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

A Sara quer sair de casa

Olá Francisco!

Estás admirado por me veres, hoje, tão cedo?
Tinha de te contar uma coisa. Fui ver as notas. Sim já te tinha dito que tinham sido boas, mas fui à escola ver as pautas... Há colegas meus com umas notas desgraçadas! Há colegas que não tiveram uma positiva! Enfim!
Este ano, como já te disse, há alguns colegas novos. Novos! Uns com idade para terem juízo!, outros, se continuarem a chumbar, ainda irão para a escola com os filhos pela mão, como diz a nossa directora de turma... É incrível a quantidade de anos que já chumbaram! Eles riem, quando a DT diz que eles devem gostar tanto, mas tanto, da escola, que não querem de lá sair. Só assim se explica levarem três anos e mais para fazerem um.  
Uma aluna demorou um mês a aparecer, foi preciso a DT telefonar, vezes sem conta, para a mãe. Entretanto, sob ameaça, lá apareceu na escola. É a mais velha de todos nós! A professora perguntou-lhe por que faltara tanto e ela respondeu torto: que só ali estava, porque a obrigaram a ir. Bem que pudesse, iria embora.
Estava a contar isto à minha mãe, a dizer-lhe que me fazia confusão, os pais não quererem saber do sucesso ou insucesso dos filhos, das faltas, das más notas, das faltas de educação... E, olha, a minha mãe não ficou nada surpreendida, disse-me que lida com casos desses e ainda piores todos os dias.  Contou-me que tem uma aluna com dezassete anos, da minha idade, no 7.º ano, que está grávida; que tem um aluno também da mesma idade, que já foi seu aluno há cinco anos no sétimo ano e continua no mesmo ano (Cá para mim, Francisco, ele já deve saber a matéria de cor e salteado!). Os pais disseram à minha mãe que não lhe compram o material, porque já sabem que ele vai chumbar mais uma vez. Ele está à espera de fazer dezoito anos para deixar a escola. Diz que não gosta de andar na escola! Caramba, não gosta de andar na escola, mas tem de lá andar!... Não seria melhor aproveitar e estudar, passar de ano, fazer alguma coisa? Não percebo em que pensam estes miúdos?! E os pais?! Que graça tem andar no sétimo ano 5 ou 6 anos só para passar o tempo?
A minha mãe diz que já falou com os pais, com os alunos, com os pais e os alunos ao mesmo tempo e não conseguiu meter juízo nenhum na cabeça daquela gente.
Mas, isto foi um parênteses! Encontrei a Sara. A Sara? Sim. A do acto irreflectido? Sim, Francisco. Ela disse-me que quer sair de casa, que os pais não a compreendem, que quer fazer a vida dela, que não quer dar cavaco a ninguém..., que está farta de ser controlada, que já tem 22 anos... Perguntei-lhe para onde ia morar e como ia fazer para sobreviver. Que ia arranjar um emprego. E as aulas? Que está farta das aulas e que às tantas não consegue fazer outra vez a Matemática. Claro, se continuares a faltar, se não estudares, se não fizeres exercícios, vais chumbar, Sara!, disse-lhe. Nem me ouviu! Vou a uma entrevista de emprego, se conseguir ficar... saio de casa, alugo um quarto, afirmou. Tentei fazer-lhe ver que devia fazer a disciplina que tem em atraso, mas creio que ela nem ouviu os meus argumentos. Pronto! Estou preocupada com a Sara, porque ela só se mete em encrencas. É filha única, os pais são óptimas pessoas, não mereciam uma filha tão destrambelhada! Quando souberem que ela quer sair de casa, vai ser um Deus nos acuda! Coitados! Pedi à minha mãe para falar com ela. A minha mãe telefonou-lhe, ouviu-a, ouviu-a, ouviu-a... No fim, a minha mãe perguntou-lhe se podia falar, ela deve ter-se calado, finalmente. A um gesto da minha mãe, saí do escritório. Uma hora depois, a minha mãe chamou-me e passou-me o telefone. A Sara disse-me, tens uma mãe espectacular, por agora não vou sair de casa. Fazes bem, Sara, disse-lhe. Bom Ano Novo! Vemo-nos na escola.
Sabes, Francisco, a Sara vai acabar por sair de casa. Ela acha que por ter 22 anos já é senhora do seu nariz, mas, como a minha mãe diz, ela só será "livre, emancipada, maior...", quando tiver com que se sustentar... E, por isso, é  que ela devia estudar e não andar a meter-se em aventuras, encrencas...