A
Francisca chegou, seguida pelo meu pai e por um rapaz alto, de cabelos
castanhos e olhos cor de avelã. Ao abrir a porta, vi logo uma quantidade de
nuvens negras a pairar sobre a cabeça da minha irmã. O meu pai estava cá com uma
cara! Parecia que estava zangado com o mundo inteiro! O rapaz alto queria
mostrar que estava tudo bem, mas, lá no fundo, lá bem no fundo, não estava nada
a correr bem. Ele bem tentava sorrir e aparentar uma serenidade que estava
longe, muito longe, bem longe de existir... O sorriso saía-lhe meio atravessado da boca
carnuda e bem desenhada... A minha mãe surgiu da cozinha com o seu sorriso generoso
e bonito, mas, ao olhar aquele quadro, o sorriso caiu e escaqueirou-se em mil
pedaços na tijoleira da entrada. Vai ser difícil juntar os cacos e colá-los,
pensei.
Tentei
acalmar o clima tempestuoso:
- Mana,
fizeste boa viagem?
A voz do
meu pai surgiu como o rugir de um trovão, elevado ao quadrado:
- Ela fez
boa viagem, sim. Mas a viagem, aqui, do
rapazinho ainda não terminou...
A minha
irmã parecia que ia explodir a qualquer momento, os olhos, muito brilhantes,
queriam saltar-lhe das órbitas, da cara. As lágrimas pareciam estar ali mesmo à
espreita, prontas para desabarem em cascata... O rapaz, de nariz empinado,
continuava com as malas na mão... A minha mãe não estava a perceber nada e eu
também não!
- Mas, o
Carlos não vinha passar cá o fim-de-semana? - perguntou a minha mãe,
tranquilamente, com aquela voz melodiosa, capaz de aplacar qualquer procela.
-
Vinha... dizes bem! Vinha, pretérito imperfeito, tão imperfeito como ele... -
explodiu o meu pai, furioso.
- Que
aconteceu? Será que me podem explicar o que se está a passar ou o que se passou
no trajecto do carro para casa, nesses escassos 10 metros? - pediu a minha mãe.
- O que
se passa é a pouca educação que dás às tuas filhas. É isso que se passa, nem
mais, nem menos...
Eu já
sabia que o meu pai ia culpar a minha mãe!
Quando
temos boas notas, as minhas filhas são a minha alegria, o meu orgulho; quando
alguém nos enaltece ou lhe fala da nossa educação exemplar, as minhas filhas têm
princípios, valores, berço... Quando algo não corre como o senhor números primos e compostos,
raízes quadradas, equações de vários graus... acha que deveria correr, somos
filhas da minha mãe.
Bem, eu
até prefiro ser parecida com a minha mãe e a Francisca, de certeza, que também
prefere!
E sabes o
que aconteceu, afinal, Francisco?
A minha
irmã vinha a caminho de casa, já ali na subida. O Carlos trouxe o carro dele, o
da minha irmã ficou em Lisboa, era ele quem vinha a conduzir. Pararam e estavam
a beijar-se, quando o meu pai passou por eles. O Sr. equações diferenciais fez marcha atrás, estacionou ao lado do carro deles e fez uma cena: mandou
a minha irmã sair do carro e entrar no dele e ao Carlos disse que desse
meia-volta e desaparecesse...
O rapaz
ignorou e seguiu o meu pai até aqui, é que a mala da Francisca tinha ficado no
carro dele. Ele não podia levar a mala, está bem de ver...
- Só
fazem figurinhas tristes no meio da rua - dizia o meu pai. - E que raio de
educação deste às tuas filhas? - acusava a minha mãe.
- Estás a
fazer essa tempestade toda por causa de uns beijinhos dentro do carro? -
perguntou a minha mãe, a rir.
- Eu sou
a única pessoa com bom-senso nesta casa? Só falta achares bem que durmam na
mesma cama, no mesmo quarto... - atirava o meu pai.
- Ora
bem, Carlos, traz a tua mala, vou mostrar-te o teu quarto...
O Carlos
seguiu a minha mãe, a Francisca pegou na mala dela e subiu a escada em direcção
ao seu quarto. O meu pai ficou no meio da sala a vociferar...
A Sra.
eufemismo esteve a suavizar o Sr. raíz cúbica e, passado algum tempo,
tudo estava, na paz de Deus, a jantar e a conversar como se nada se tivesse
passado.
O que é
que a minha mãe falou com o meu pai? Pois, Francisco, não faço a menor ideia,
mas é sempre assim, ela consegue sempre amaciar o meu pai: deve ser a subjetcividade feminina a
cair implacável sobre o concreto, o real masculino.
Francisco,
depois, conto-te o que achei do Carlos, o namorado da minha mana.
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