Francisco,
quando a minha irmã fez dezoito anos, houve uma discussão cá em casa que nem te
passa pela cabeça. A minha irmã manteve-se calada ontem, por causa dessa briga.
Tu bem viste que só os olhos dela, aflitos e suplicantes, falavam, gritavam
desesperados!
Ainda me
lembro de tudo como se tivesse acontecido há dois ou três dias.
- Tenho
dezoito anos, tenho o direito de viver a minha vida como muito bem entender –
disse a Francisca altiva.
- E vais
viver de quê? – perguntou-lhe a minha mãe, mais curiosa do que preocupada.
E eu ia
pensando: ai se o pai chega agora!
É que o
meu pai quer sempre tudo muito bem explicadinho!... Ou então, não!... Parecia
já estar a ouvi-lo: ó minha amiguinha, enquanto viveres debaixo deste tecto,
fazes o que eu mando...
E o meu
receio concretizou-se, o meu pai chegou logo e nós nem demos por ele, deve ter
entrado pela garagem. E foi logo dizendo da sua justiça, sem esperar, ao menos,
que o puséssemos ao corrente da situação. Só me lembro da sua voz de trovão
atrás de mim:
- Filha
minha não sai de casa sem a minha autorização. Ah, mas se saíres por aquela
porta, menina, não voltas a entrar, ouviste bem?
Sobressaltámo-nos, a minha irmã quase deu
um pulo, mas recompôs-se logo, encolhendo os ombros, como que a dizer, fala,
fala, vai falando...
Desde que a Francisca fez os seus dezoito anos que
o ar estava pesado, irrespirável, as discussões sucediam-se... Porquê? Não sei.
Ela andava sempre a dizer que aos dezoito é que era, aos dezoito é que chegava
a liberdade, aos dezoito é que se dava o seu 25 de Abril... E os meus pais
sorriam: o pai trocista, a mãe comedida.
A minha irmã achava que tinha chegado a hora de
levantar voo, de ser livre, e sentia que lhe queriam cortar as asas.
Como
fomos todas apanhadas desprevenidas, a minha mãe e a Francisca calaram-se. Aí,
o Sr. raiz quadrada não se conteve e atacou a Sra. Interjeição:
-
Fala, grita, esperneia... Que raio de mãe me saíste também! Anda um
homem a educar uma filha para isto?
- Para
isto o quê? – perguntava a Francisca, meio espantada com o rumo da conversa.
Eu olhava
para os três, sem perceber. Afinal, a minha irmã não disse que ia sair de casa,
mas o meu pai deve ter percebido que ela queria partir... Sei lá! Sei que se
gerou uma confusão de todo o tamanho, a discussão entre o meu pai e a minha
irmã.
A minha
mãe para pôr um ponto final na conversa deles, falou baixinho (uma técnica que
usa nas aulas, quando quer transmitir algo, mas os alunos estão todos a
falar!):
- Muito
bem, mantive-me calada e ouvi o que um e outro disseram. Agora chegou a minha
vez de falar...
- Também,
já não era sem tempo! Agora vê lá se, pelo menos uma vez, ficas do meu lado e
pões algum juizinho na cabeça da tua filha.
- Amanhã,
Francisca, amanhã, quero conversar contigo. Hoje estamos todos muito exaltados...
- Tenho
de esperar até amanhã para saber o que de tão importante tens para me dizer? Ó
mãe, não acredito que ainda vais remoer o assunto esta noite e só amanhã é que me
dizes alguma coisa.
- Olha
lá, a miúda tem razão!
- Não me
chames miúda, tu sabes que eu detesto que me chames miúda, garota, criança...
- Pois,
já sei que és crescida e responsável, responsável e crescida, muito crescida e
muito responsável...
O dia
amanheceu cinzento, mas o sol tinha de brilhar. A minha mãe tinha de falar com
a Francisca. Não dormi a noite inteira. Virei-me e revirei-me. Pensei e
repensei. Parecia que era eu que tinha de meter juízo na cabeça da Francisca.
Ela era tão teimosa como o pai, e a mãe sabia-o, oh, se sabia, sabia também que
à menor dificuldade, a sua linda filhinha correria para debaixo das suas asas...
Aliás, tinha a certeza disso, por isso, para quê entrar em conflito,
barafustar, gritar, agitar as águas já tão turvas... Mas, lá no fundo, muito lá
no fundo, eu tinha medo... e a minha mãe também, de certeza.
- Mãe,
desembucha, não tenho a vida toda! - impacientava-se a Francisca.
- Pois
não, e os dezoito anos esgotam-se, voam, esfumam-se num piscar de olhos, não é?
Só tenho duas questões a pôr-te.
Olharam-se,
a minha maninha tremeu ligeiramente e pestanejou nervosa.
- Quero
apenas saber o que é para ti ter dezoito anos e como pensas então viver essa
liberdade que dizes ter a partir desta linda idade? Quando tiveres a resposta,
diz-me. Ah! E ao contrário do que pensas, tens todo o tempo do mundo para
pensares na resposta...
- Ó mãe,
mas eu não quero sair de casa, o pai é que começou com aqueles disparates
todos...
- Eu sei,
fofinha, eu até sei bem o que queres e o que não queres! Eu conheço-te bem!
Mas, apesar disso, preciso que sejas tu
a dizer-mo!
A minha
mãe dirigiu-se para o escritório, onde a esperava uma resma de testes para
corrigir, ouvi os passos da minha irmã escada acima e à hora do jantar estávamos
todos à mesa, como sempre, sorridentes, a contar como nos correra o dia e a
dizer um monte de disparates. A borrasca passou. Não se falou mais no assunto!
O que é
que a Francisca respondeu à minha mãe? Não sei! Conversaram no jardim, sentadas
lado a lado, vi-as da varanda, mas não consegui ouvir a conversa, ouvi-as rir
e, nessa altura, fui ter com elas. Sentei-me ao colo da minha mãe, abracei-a e
à minha maninha... Ficámos abraçadas as três a rir e a dizer parvoeiras até
cairmos do banco para a relva. O meu pai chegou e disse, é assim que gosto de
ver as minhas meninas!
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